Contos londrinenses:

Leitura e interpretação da obra Escândalos da Província de Edison Máschio, primeiro romance londrinense que retrata a sociedade na década de 50>>> leia aqui

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

A FICÇÃO DRAMATIZA A HISTÓRIA

A RECONSTRUÇÃO LITERÁRIA DE PEQUENA LONDRES
Edison Máschio e os Escândalos da Província




A FICÇÃO DRAMATIZA A HISTÓRIA




No romance Escândalos da Província há referências consistentes aos episódios históricos ocorridos em Londrina nos anos 50, o que aponta para uma releitura da história social local. Ao constatarmos um conjunto de acontecimentos vivenciados pelas personagens no romance, verificamos a existência dos mesmos que foram analisados pela historiografia da época. Um dos vários episódios foi à passeata das meretrizes de cabeças raspadas, registrado pela imprensa local e, segundo a versão do jornalista Marinósio Filho, a “passeata original das prostitutas” foi organizada pela dupla de jornalistas Ciro Ibirá de Barros e Dicesar Plaisant Filho, da Gazeta do Norte, mentores de uma campanha vingativa contra o delegado Silveira Santos, acusado de truculência e mal-tratos às “doidivanas” londrinenses. O desfile ocorreu precisamente às 9 horas do ano de 1948:


“Todas as mulheres com as cabeças raspadas, na frente os jornalistas Ciro e Plaisant, iniciaram a marcha do protesto. Curiosos também participaram. O espetáculo foi dantesto. Um misto de agressão e desabafo. As meretrizes desfilavam, passos lentos. Umas sérias, outras gargalhavam. Havia as que choravam. A polícia, permaneceu em seus postos. Observava apenas. O delegado não se fez presente. A avenida Paraná ficou apinhada de gente. A assistência delirava. Gritos, palmas, apupos e gargalhadas.
O moralista, “puritano”, repudiava. O debochado, zombava. Algumas senhoras assistiam, silenciosas e outras, se refugiavam nas casas comerciais. Lógico que houve senhoras que protestaram contra o espetáculo: “Prostituta não tem vergonha”. “Isso não é gente”. “Que imoralidade.”(7)


Segundo a interpretação da imprensa, esse episódio denunciou os exageros cometidos pela polícia, abuso de poder da cúpula da Segurança Pública local. O fato provocou um sentimento de indignação na população. A idéia era chocar, criar um fato, exigir o respeito aos direitos das prostitutas, diariamente humilhadas pelos policiais de plantão. A transformação desse acontecimento em matéria literária foi crucial para revelar outra realidade, baseada na decadência dos costumes da sociedade local e não somente vinculada à questão da denúncia. No romance Escândalos da Província, o episódio aparece narrado com outra profundidade:


“Num daqueles dias, à hora matutina, a cidade foi surpreendida com um espetáculo original. Escoltadas por soldados, cinco prostitutas desfilaram pelas ruas centrais, levando no ombro um cartaz humilhante: “Somos prostitutas, vergonha da cidade”.
Leon Arrochelas foi o autor intelectual da façanha. Há tempo exteriorizava uma espécie de ojeriza contra as prostitutas, procedimento peculiar de sua natureza de pederasta. Aproveitando o calor da campanha da moralização, vislumbrava uma oportunidade de ouro para perseguir as prostitutas. Ordenara ao delegado de polícia que o chamasse quando as prendesse. O delegado conseguiu prender cinco que cometiam desordens num bar. Comunicara-se com o Juiz, recebendo então a estranha ordem: a polícia deveria raspar a cabeça das meretrizes e em seguida obrigá-las a desfilar pela cidade.”(8)


A reconstituição histórica e a narrativa literária aí se fundem, se interpenetram e se completam. A descrição do discurso histórico da imprensa interpreta o episódio focando exclusivamente seu caráter sensacionalista e o impacto social e moral sofrido pelos expectadores do “espetáculo”. O modo como foi organizado e programado o desfile das prostitutas, pelos jornalistas da Gazeta do Norte, sugeriu uma denuncia contra o abuso de poder praticado pelos policiais da Corporação local que, além de explorarem as meretrizes, visavam a exposição delas para situações ridículas, como se tivessem autoridade sobre o corpo e sobre a atividade exercida por elas. Nesse discurso fica caracterizado o despreparo da polícia em enfrentar o problema da prostituição na cidade, colocando-o apenas como questão delituosa e não como fenômeno social.

Fica evidente que, no fundo, os jornalistas Ciro e Plaisant, tinham interesse em demonstrar que podiam manipular a opinião pública, defendendo as prostitutas em oposição à atitude da polícia. O fato virou notícia por muito tempo, forçando uma tomada de posição do alto escalão da Segurança Pública, que ainda lidava com o assunto com bastante cautela. Não convinha ao poder público polemizar uma delicada situação, portanto, estabelecia um distanciamento estratégico das acaloradas discussões em torno do ocorrido.

A ficção romanesca parece ir mais a fundo, descobrindo, hipoteticamente o que originou o episódio e, de certo modo acrescentando os elementos pelos quais se produziu o “evento”. O narrador conta a história por um ângulo diferente, buscando coerência nas ações das personagens, isto é, os motivos que levaram a realização de um desfile tão excêntrico na pacata Pequena Londres. Ele busca na essência dos conflitos e dos escândalos históricos vividos pelas personagens a armação da trama contra as meretrizes.

Na narrativa literária evidencia-se que o autor intelectual da “façanha” foi o juiz pederasta. Ele configurava uma das personagens mais moralistas da cidade. Sua natureza homossexual mostrava claramente certo desequilíbrio emocional para tratar de um problema complexo, um “barril de pólvora”, que gerou uma repercussão negativa em Pequena Londres. No romance a sociedade incorporou a defesa das meretrizes por praticarem um “trabalho honesto”, via com naturalidade os serviços prestados por elas à cidade.

Na ficção as prostitutas simplesmente desfilam, sem saber que estavam sendo julgadas por práticas ofensivas ao bom costume social. O próprio narrador diminuiu o impacto do acontecimento, amenizando o choque de uma cena teatral bastante original. Mas deixa claro ao leitor que o episódio das carecas não ocorreu espontaneamente, foi armado por quem demonstrava desejo de vingança contra as prostitutas. O ódio às meretrizes se justificava mais pelo fato delas representarem objeto de desejos dos jovens, do que pela sua condição social. Seu próprio amante Dr: Adelardo Nobre era constantemente “fisgado” por elas que prestavam serviços caprichados. Esse fato o deixava cego de raiva, aumentando ainda mais a idéia de levar às últimas conseqüências a tentativa de exterminar definitivamente todas as meretrizes da cidade. Não foi tarefa fácil. Com esse episódio as meretrizes ganharam notoriedade, porque todos os homens que por ali passavam, as reconheceram como puro fruto do prazer, e, o que deveria ser uma surpresa desagradável, passou a caracterizar um ato de piedade para quem garantia momentos de alegria e amor proibido.

Assim, no relato histórico o episódio ganhou conotação divergente da narrativa literária. As personagens reais são bem diferentes das fictícias, uma vez que, o foco de interpretação tomou um rumo distinto, fincado entre o discurso jornalístico e a crônica policial. O episódio é recontado por outras fontes, por testemunhas também envolvidas na armação. Sob um mesmo fato, lançaram-se várias interpretações. Marinósio Filho o narrou dramatizando o aspecto da denúncia, da provocação feita pelos jornalistas Ciro e Plaisant ao poder policial. Esta visão deixava evidente que, ambos jornalistas tinham interesse em confrontar com ironia as autoridades moralistas da cidade, desejando desafiar as autoridades locais que viam com descaso a humilhação das meretrizes. A idéia de defendê-las ligava-se com a tentativa de desestabilizar a influência política exercida pelo delegado Silveira Santos, que baixou uma portaria para aprisioná-las. Após o desfile das carecas, ele foi pressionado a deixar o cargo por não ter mais condições de controlar as intrigas sociais, das quais a Segurança Pública municipal tinha a incumbência de solucionar eticamente.

O episódio entrou para a história local pelo seu caráter excêntrico, numa época que não era comum produzir polêmicas em torno de um fato de grande dimensão, apesar de seu caráter banal em relação aos direitos humanos. A descrição de Marinósio Filho permite compreender o episódio pela sua espontaneidade, mas é possível também ver a manipulação do fato, induzindo a população a refletir sobre a necessidade de mudança nos altos escalões do comando da cidade.

A literatura reescreveu esse episódio de maneira ácida, indo buscar na investigação um argumento bastante coerente, próximo da realidade que escandalizava Pequena Londres. A narrativa literária deu ênfase ao aspecto do poder moral exercido pela justiça, que interferia na vida pública e privada do cidadão comum. A personagem Dr: Leon Arrochelas, como juiz, ocupava cargo superior ao de delegado, portanto seria improvável que a ordem ou mesmo a autoria intelectual do desfile das carecas partisse unilateralmente da figura do delegado. A literatura, nesse caso, invadiu a história, com único interesse em reconstituir a ambigüidade do episódio. Ela estabeleceu uma verdade subjacente, que não estava exposta à visão dos inúmeros expectadores, que presenciaram o “espetáculo das carecas”.

A narrativa literária se aprofundou naquilo que motivou a perseguição ridícula e desmoralizante intentada pelo Dr. Leon. Só, aparentemente, limitou a descrever o episódio, deixando implícito que, tratando-se de questão moral, nenhum poder constituído por grupos dominantes de Pequena Londres detinha condições de julgar e controlar os costumes da sociedade.

Nesse sentido a narrativa de Escândalos da Província pode ser encarada como reprodução e interpretação desse episódio, no momento preciso de sua reconstrução. O objetivo do discurso literário, nesse contexto, é a produção da realidade estética. “E realidade estética significa problematizar a realidade objetiva, seja ela qual for; a literatura visaria então não apenas a colocar a presença das coisas, mas a interrogar essa presença, a colocá-la em questão.”(9) Nesse episódio histórico, o narrador questiona com legitimidade a veracidade do fato, vai buscar no “silêncio do poder” os motivos que levaram à atitude de raspar as cabeças das prostitutas, descortinando as intenções veladas, “maquinadas” pelo juiz Dr: Leon Arrochelas. Daí que, a literatura consegue revelar seu objetivo de dar conta de uma realidade histórica que escapou do próprio discurso histórico jornalístico. Como dizia o escritor Malraux, “a matéria que o romancista é obrigado a buscar no universo exterior serve-lhe apenas como meio de criação que vai nutrir seu poder de transfiguração do real e favorecer a criação de seu universo particular”.(10)

Essa transfiguração do real resultou num questionamento inesperado de um episódio histórico, manipulado pela imprensa local, que nos dá a impressão que o fato narrado realmente ocorreu daquela maneira. Ao contrário, a manipulação literária, tornou-o mais realista e coerente com a realidade da época. A questão central era proporcionar um escândalo que chocasse a população, mas a reação dos expectadores foi tão ambígua, que a grande maioria da população masculina se sentiu escandalizada, não pelo episódio em si, mas por se identificar com as prostitutas, vendo-as como “batalhadoras” necessárias à sociedade. Na época, era consenso em Pequena Londres as meretrizes não representarem ameaça à ordem e ao convívio social.

Nessa mesma época em que ocorreu esse episódio cômico, houve outro de dimensão mais profunda: a trágica morte de um ilustre advogado de Pequena Londres. O envolvimento da Justiça local em escândalos históricos trepidava a pacata Londrina, inspirando cronistas e escritores que não estavam comprometidos com grupos dominantes da sociedade. No romance Escândalos da Província, o narrador nos apresenta brevemente um crime, cometido por um juiz de direito da cidade. Na época, a cidade foi abalada de tal forma que a própria literatura sentiu um ar tenso no seio social, evitando, assim, por inúmeras razões, apimentar a situação já caótica do caso. Daí que, o narrador intencionalmente procurou omitir referências diretas ao crime, procurando elucidá-lo através dos diálogos e das confissões das personagens. Mas não deixou de registrar o “incidente” fatal, como um dos mais bárbaros ocorridos no interior de uma cidade considerada “civilizada”. Muito superficialmente a personagem Sinfrônio comentava com o novo juiz da Comarca:


“Ainda falam no crime do Juiz. Saiba o senhor que o advogado foi entregue ao pasto dos vermes, estupidamente. Porque o crime teve como causa o ódio e a inveja. O seu colega era doente na acepção do termo e capaz de levar a cabo as piores proezas. Perseguia inimigos e enxotava advogados das salas de audiência.”(11)



No romance é fundamentada a tese de crime banal, motivado pelo ódio e a inveja. O narrador entende a atitude do juiz como insana, proveniente de doença mental. Argumenta que o referido juiz já não conseguia discernir os problemas da vida profissional dos de rixa pessoal, levando todas as suas diferenças forenses à apreciação pública. Todos os cidadãos de Pequena Londres conheciam bem a rixa entre ambos só que ninguém tomava partido nessa luta de “titãs”. Pois sabiam que cedo ou tarde poderia ocorrer aquele acerto de contas, previsto como uma trágica morte anunciada:


“Numa noite brumosa, após maquinar os passos, quando o advogado dirigia-se despreocupadamente para sua casa, o juiz aguardara-o de tocaia, desferindo-lhe dois tiros na cabeça.
Dois tiros à queima-roupa, frontais e certeiros! Ao ver o advogado estrebuchar, cheio de dores horríveis, vomitando sangue, marchando para a escuridão da morte, expandira espasmo emocional, de júbilo e contentamento. Tivera liquidado aquela inteligência luminosa, aquela veia cintilante do saber que o castigara com tantas lições.”(12)



A narrativa reconstituiu os últimos lances do crime, mas guardou em segredo a real identidade do assassino e da vítima. Mas, como se tratou de um crime que abalou a região norte do Paraná, já pressupunha que o leitor da época se recordaria desse acontecimento, ainda vivo na memória da sociedade. A inquietação do narrador deixa claro que, a criação das personagens fictícias correspondia com a realidade do crime. A verdade é que cidade parou. O assassinato do advogado chocou até mesmo aqueles corajosos caçadores de estórias que saíam à noite em busca de matéria-prima para compor suas narrativas – cronistas e romancistas boêmios.

Já o Historiador Tony Hara, identifica a vítima e o assassino ao investigar minuciosamente todos os detalhes do crime, após longas pesquisas historiográficas, construiu uma versão que correspondeu fortemente com a realidade dos fatos. Analisando o processo e a repercussão na imprensa local da época, elucidou pontos importantes, os quais a própria imprensa não teve acesso, ou, ignorou para manter sua postura de imparcialidade adotada desde o momento da tragédia. Na versão de Tony Hara se constatava que:


“Nas ruas poucas pessoas transitavam. Era hora de dormir. O advogado Alcides Tomazetti voltou para casa de táxi, angustiado, preferiu não entrar e resolveu passear nos arredores de sua residência. O juiz Ismael Dorneles subia pela Paraná, depois de uma sessão de cinema no Ouro Verde e de um cafezinho com amigos no restaurante Caloni. Ele também voltava para casa. Os dois homens se encontraram no cruzamento pouco iluminado entre a Avenida Paraná e as ruas Ceará e Tupi, onde morava Tomazetti. Eles estavam armados. Foram disparados dois tiros. Alcides Tomazetti, 46 anos, desabou na calçada ferido na testa. Oito horas depois, o advogado morreu na Santa Casa de Londrina.”(13)



Numa descrição cinematográfica, rica em detalhes, composta literariamente, Tony Hara esmiúça com um olhar misto de pesquisador e romancista o episódio, revelando uma evidência do crime: a rixa. Esta versão do crime coincide com a do escritor Edison Máschio. O advogado Alcides Tomazetti e o juiz Ismael Dorneles de Freitas haviam travado antes do crime uma verdadeira batalha de insultos e ameaças, se tornando inimigos implacáveis, motivados por questões banais. A relação entre ambos era de uma provocação irritante no ambiente de trabalho, um não suportava o outro; a simples presença de um no mesmo espaço do outro já criava um clima de tensão. Sendo figuras ilustres no meio jurídico, disputavam a atenção no círculo de advogados, travando uma competição acirrada acerca de quem dominava mais conhecimento forense.

A sociedade londrinense, em geral, se posicionou entre a consternação, o choque e o pânico. Quando um crime envolve indivíduos ilustres pertencentes à burguesia, era consenso, após o instante de abalo, abafar o fato a qualquer custo. Neste crime “as explicações preconcebidas não se encaixavam com a situação social dos protagonistas. Não era a “maldita cachaça”, muito menos falta de cultura ou de convívio com a elite civilizada, que provocou a morte de Alcides Tomazetti. Esse deslocamento da certeza e da condenação imediata deixaram jornalistas – principalmente os que usavam a palavra como chicote – completamente desnorteados.”(14)

A imprensa local adotou um posicionamento de neutralidade, isentou-se de qualquer editorial reflexivo acerca da violência urbana que começava a ser praticada pela burguesia. Simplesmente se calou, como se tratasse de uma censura voluntária, omitindo a informação ao público em pânico. Não havia para ela a existência de um vilão a ser condenado nem tampouco uma vítima fatal, pois não se sentia confortável na função de esclarecer e informar o ocorrido com celeridade. A cidade foi tomada por um clima de tensão jamais visto na história. Apesar do crime ter ocorrido na rua, no exato momento do disparo, uma única pessoa presenciou o fato como testemunha ocular:



“Depois da descarga emocional e do alívio de ver o oponente caído na calçada, Ismael Dorneles de Freitas refez-se e tratou de providenciar ajuda médica a Tomazetti, que ainda respirava. Dorneles pediu para que o guarda noturno Francisco Martins telefonasse para um médico, mas a sala onde se encontrava o telefone no Posto Regina estava trancada.”(15)



A única testemunha arrolada no processo foi um guarda-noturno. Certamente estava consciente do que representava aquele crime. A testemunha sequer teve tempo de gozar de notoriedade na imprensa, não teve aqueles minutos de fama. Sua condição social era tão incompatível com a dimensão do fato que o valorizaram muito pouco como peça-chave para elucidar o crime. De qualquer maneira, estava à disposição da justiça, a qual se preocupou muito mais em encontrar um culpado para responsabilizar a injustificável atitude da polícia, do que efetuar a prisão em flagrante do autor do crime. O narrador de Escândalos da Província, cuidadoso no julgamento dos fatos, neste contexto, suscitou:


“Vergaram os fatos de tal jeito, que arrumaram como artifício à legítima defesa. Buscaram uma testemunha ocular, que era cega de um olho e estrábica de outro. Tratava-se da única que existia e depunha a favor do assassino. A justiça tinha de ouvi-la e dar-lhe razão.”( 16)


Ironicamente a única testemunha do crime mal enxergava, mal sabia que presenciara um crime histórico. Não se sabe ao certo o fim que levou o guarda-noturno, certamente foi poupado pela sua condição social e física, não suportaria tanta pressão, mas não deixava de ser uma testemunha legítima. Como naquela época não se dava importância e nem se levava em consideração a palavra de indivíduos humildes, de trabalhadores braçais, a testemunha foi pouca explorada, até mesmo pelos meios de comunicação. Não havia portanto, “a quem responsabilizar ou culpar pelo ato criminoso, a não ser o próprio juiz Ismael Dorneles de Freitas. Mas, como condenar uma figura notável da cidade, que tinha justamente como função social julgar, aplicar a lei e manter a ordem.”.(17) Seria impensável que nos anos 50, um simples guarda-noturno, quase cego, pudesse testemunhar contra um juiz, assassino confesso, que detinha o controle absoluto da justiça local, culto e, sobretudo, crente na impunidade pelo fato de gozar de foro privilegiado.


O influente professor e advogado-cronista, Alberto João Zortéa, amigo de Alcides Tomazetti e admirador do magistrado Ismael Dorneles de Freitas, deu uma versão diferente ao crime, no que se refere à reconstituição dos momentos finais da fatalidade. Como companheiro de profissão da vítima, argumentou numa crônica intitulada “Versão para o difícil”, que dr: Alcides Tomazetti era “cavalheiro inteligente; possuidor de uma memória incrível, mas esquisito”. Considerava desnecessária a atitude de Alcides elaborar suas petições advocatícias numa linguagem rebuscada, quase incompreensível para impressionar o Judiciário da Comarca e da capital. Para o cronista a idéia de escrever difícil, hermeticamente, como estratégia de convencimento e de imposição no meio forense não deu um bom resultado:




“E depois de várias intervenções da turma do “deixa disso”, ao querer tirar um desforro pessoal com o magistrado, culminou, certa tarde, no final da Avenida Paraná, com o já esperado. O dr: Tomazetti, que vinha prometendo desmoralizar o juiz, seguiu ao seu encalço, para amedrontá-lo, manobrando um Parabelum-alemão.

O juiz ao pressentir a manobra da arma, virou-se num repente, afrontando-se com o Tomazetti e lhe deu um tiro de bereta, certeiramente, no meio da testa.

Já viu... Caído ao chão o advogado, prestou-lhe ainda socorros, mandando conduzí-lo à Santa Casa, que, não resistindo ao ferimento, veio a falecer.”(18)


É necessário corrigir duas questões centrais nesta crônica. A primeira, que o crime ocorreu no período da noite, precisamente no momento em que já não havia mais ninguém transitando nas ruas centrais. A segunda, é a de que foram dois tiros disparados e não um único tiro. São informações relevantes, investigadas por Tony Hara, como também, por Edison Máschio, que influenciam muito na reconstituição do crime. As coincidências das informações narradas pela literatura e pela investigação histórica foram fundamentais para se ter uma noção da verdade dos fatos. Numa tragédia dessa proporção é natural que as confusões de informações sirvam para ofuscar a verdade e mesmo omitir situações que revelam a natureza e os motivos daquele acontecimento.

Na literatura, a personagem Sinfrônio foi quem mais sentiu a morte do advogado, ele “relembrava a cultura incomum, o espírito vivaz e galhofeiro, adornado de coração adamantino, incapaz de fazer mal a uma formiga.”(19) A personagem Leon Arrochelas, também investigou o arquivo do Cartório Cível e constatou que Alcides Tomazetti “fora um cravo no sapato do juiz. Dera-lhe eruditas e jocosas lições de direito.”(20) Daí o verdadeiro motivo das desavenças entre o assassino e a vítima, o qual resultou nesta premeditada vingança cometida pelo juiz. As personagens Leon e Sinfrônio estão convencidas de que a “batalha judiciária empolgava o juiz com lances mentais criminosos. Suas sentenças eram continuamente reformadas pelo Tribunal de Justiça; as vitórias do advogado lhe representavam humilhação, desprestígio.”(20)

Nesse clima de consternação, revolta e lamentação, o narrador informa aos leitores que, o crime do juiz permitiu realizar uma reflexão profunda sobre o caráter moral da população, a falta de coerência nas ações dos indivíduos, que aos poucos iam assistindo a decadência dos valores da burguesia local. Associa-se também a nítida contradição social, na qual os padrões de moralidade pouco correspondiam com a imagem de povo civilizado, rico e próspero.

O narrador revela uma disposição incansável para retratar a sociedade nos anos 50, percebendo que, nesta época, produziram-se as mudanças mais significativas do comportamento social. A personagem Tiburcio Lastragol, conceituado jornalista e dono do jornal “O Saturno”, mas de identidade social ligada à dos vigaristas da cidade observava: “Ser chamado de ladrão em Pequena Londres é termo de rotina. A ofensa cala fundo quando chama o indivíduo de analfabeto. Ninguém quer ser taxado de ignorante. Por outro lado, aqui, louco não é aquele que rasga dinheiro. Louco é identificado como louco quando diz a verdade.”(21) Esse era o pensamento que dominava os indivíduos em Pequena Londres, quem carregava a fama de ignorante tinha pouca expectativa de vida, pois era visto como “jacu”, expressão cunhada aos indivíduos folclóricos, ingênuos e explorados por todos na cidade.

Assim, Tiburcio deixa subentendido que o termo “ignorante” ofendia muito mais a honra do indivíduo do que qualquer tipo de violência física ou moral. Ter a fama de ignorante em Pequena Londres era como não ter direito de participar das decisões políticas e da partilha da riqueza do café. Essa idéia de certa forma relacionava-se ao crime do juiz, pois havia um forte indício de que tanto o assassino quanto a vítima não suportaram o peso desse termo, que pendia para uma desmoralização definitiva do bom profissional, seja ele qual for, devendo sempre evidenciar seus conhecimentos, suas habilidades para ganhar reconhecimento da sociedade. Qualquer deslize em relação à prática da humildade era fatal. O indivíduo humilde não era bem-vindo, ele necessitava recorrer à soberba e à arrogância se quisesse ter alguma chance de sobreviver em Pequena Londres. Caso contrário, teria que enfrentar este estado desalentador:



“Pequena Londres era fértil em escândalos, laboriosa escola de vícios, presa num emaranhado de doenças morais. O cidadão ficava voltado para o lado ruim da vida, distante dos primores da virtude. Poderia haver fato mais repelente do que um Juiz de Direito amasiar-se com um advogado e vender sentenças nos gabinetes da justiça?”(22)



Podemos notar nesta outra personagem um caráter bastante subjetivo à cidade, que generaliza os escândalos decorrentes da falta de virtude dos agentes históricos que, a todo instante, revelavam atitudes ambíguas e pouco nobres. As instituições também colaboravam para que o ambiente social ganhasse em tensão, uma vez que não se tinha preocupação alguma em manter valores tradicionais de incorruptibilidade no seio social. Daí que a reflexão do narrador confirma apenas os fatos informados pelas personagens. A cidade vista por este prisma negativo não significava, de modo algum, uma crítica demolidora ou mesmo raivosa. Significava na verdade uma demonstração de quem queria lutar, travar uma batalha cotidiana para libertar Pequena Londres desse baixo astral.

Entretanto, o romancista tinha apenas, no seu arsenal bélico para enfrentar a guerra, uma caneta e papel. Para tentar mudar aquela situação este material era muito pouco dada a proporção dos inúmeros escândalos insolúveis na cidade. Daí que, o narrador resolveu produzir com liberdade um conhecimento reflexivo sobre a situação histórica mais relevante, focada nos escândalos institucionais que comprometiam a imagem de cidade laboriosa, rica e dinâmica, o Eldorado.

Em Pequena Londres a década de 50 foi marcada literalmente por mudanças em todos os sentidos. Os avanços econômicos decorrentes da euforia do café produziram riquezas incalculáveis, a ponto de enlouquecer o indivíduo mais simples da cidade. Foi exatamente esse cenário raro de riqueza em contraposição a uma estrutura social frágil em princípios morais e culturais que mais intrigou o escritor Edison Máschio, que entendia ser crucial registrar literariamente o comportamento social da época. A intenção de construir um espelho real da sociedade, pesou na consciência a necessidade de ser fiel aos acontecimentos históricos. Daí que sua criação literária tornou-se um documento da época, um documento legítimo dos fatos mais marcantes da cidade. Os episódios, o desfile das prostitutas carecas e o crime do juiz constituíram só um exemplo das relações entre os indivíduos na sociedade. Essas relações foram matéria-prima da literatura, o produto final de uma narração que desvendou o significado histórico de uma sociedade que, a cada década, ganhava um traço de identidade diferente. Ela precisava de uma identidade única.






REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS




1 - VARGAS, Llosa Mário. Kathie e o hipopótamo. Rio de Janeiro: Francisco Alves,
1988. p. 11.

2 - op.cit. p. 11.

3 - op.cit. p. 13.

4 - CÃNDIDO, Antonio. A personagem do romance. In: A personagem da ficção. São
Paulo: Perspectiva, 1968. p. 58.

5 - MÁSCHIO, Edison. Escândalos da Província. Londrina: Promoções Publicitárias,
1965. p. 24.

6 - LIMA, Luiz Costa. Estruturalismo e Teoria Literária. Petrópolis: Vozes, 1973.

7 - MARINÓSIO FILHO. Dos porões da delegacia de polícia de Londrina. Londrina:
Gráfica Técnica/Canadá Produções didáticas S/A, 1979. p. 11

8 - MÁSCHIO, Edison. Op. cit. P. 59.

9 - FREITAS, Maria Teresa de. Literatura e história: o romance revolucionário de André
Malraux. São Paulo: Atual, 1986. p. 36

10 - op. cit. p. 42.

11 - MÁSCHIO, Edison, op.cit. p. 36.

12 - op. cit. p. 38.

13 - HARA, Toni. Caçadores de Notícias; História e crônicas policiais de Londrina 1948-
1970. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 2000. p. 59.

14 - op. cit. p. 61.

15 - op. cit. p. 76.

16 - MÁSCHIO, Edison. Op.cit p. 37.

17 - HARA, Toni. op. cit. p. 61.

18 - ZORTÉA, Alberto João. Londrina através dos tempos e crônicas da vida. São Paulo:
Ed. Juriscred, 1975. p. 242.

19 - MÁSCHIO, Edison. Op. cit. P. 37.

20 - Op. cit. p. 37.

21 – Op. cit. p. 73.

22 - Op. cit. p. 65.

A TRAMA DAS AÇÕES DAS PERSONAGENS

A RECONSTRUÇÃO LITERÁRIA DE PEQUENA LONDRES
Edison Máschio e os Escândalos da Província


A TRAMA DAS AÇÕES DAS PERSONAGENS


No romance Escândalos da Província, Sinfrônio Arrabal é o prefeito de Pequena Londres. É a personagem central, que comanda todas as ações das quais a cidade necessita para se desenvolver. Tudo gravita em torno dele, de modo que, as personagens secundárias dependem fielmente do que ele, presumidamente, pensa sobre a justiça, a moral, a religião, a riqueza, enfim, os temas que cercam a vida em uma cidade de porte pequeno do início do Século XX. Sinfrônio tem um irmão, concebido fora do casamento, fruto de um relacionamento do pai com uma prostituta. Esse fato revela que a personagem tem um passado nebuloso, que tenta escondê-lo de seus amigos e da própria população para não arranhar sua imagem de figura moralista.

Na cidade ninguém se importa com a vida particular dele, uma vez que, a preservação de sua aparência conta mais do que seu passado. Assim, ele se apresenta como personagem transparente e puro, longe dos escândalos no seio social. A sua moral ,em relação ao cargo que ocupa, torna-se elemento essencial da trama, pois Sinfrônio, para manter sua postura social e política, precisa esconder os fatos imorais da sociedade. Mas, aos poucos, o narrador vai revelando que esta personagem é o próprio símbolo da imoralidade de Pequena Londres. Suas atitudes e ambições fornecem munição para atacar todas as ações praticadas pelos aproveitadores e aventureiros da cidade.

A personagem Walkiria Sardanapalo é noiva de Sinfrônio. Leva uma vida cheia de contradições. Suas intenções com o noivo são duvidosas, uma vez que não sente amor por ele, mas não quer perder a esperança de herdar uma grande fortuna. Inconstante e de caráter cruel, humilha o noivo, exercendo um relativo poder sobre ele, o qual se entrega à paixão cega, louca e irônica. A relação dos noivos é pontilhada por laços de dependência sexual, uma vez que, Walkíria só pensa no dinheiro e no status social e Sinfrônio só pensa no objeto sexual e na satisfação do prazer momentâneo. Sinfrônio revela sua fraqueza de homem apaixonado e dominado pela noiva. Consente nesse domínio, pois não é totalmente fiel à paixão, freqüentemente vai às “boates”, “adora” mulheres alegres, aí adquire fama de mulherengo.

Esse imperfeito relacionamento amoroso passa a ser referência moral para os demais habitantes de Pequena Londres e, sobre ele, as relações dos indivíduos são moldadas, de modo que nenhuma personagem foge desse padrão de moralidade praticado nas instituições da cidade.

Sinfrônio é símbolo do “trabalho”. Chegou ao cargo mais alto da cidade, porque lutou e com o esforço do seu trabalho foi reconhecido como homem merecedor do cargo. De tradição familiar fincada na pobreza cultural e material, esconde da sociedade seu pai, pois tem vergonha de sua aparência humilde; o aprisiona dentro de casa, procura manter o irmão longe da cidade, embora as pessoas não terem interesse em questionar o passado, pois este podia condená-las. É fundamental, para o narrador, mostrar as ações vinculadas ao presente, como se as personagens vivessem somente a fase adulta, pois todos os que vivem na cidade vieram de algum canto do país, aventurar, buscar trabalho, oportunidade de enriquecimento, todos, com os mesmos objetivos, querem construir uma nova vida, uma vez que as dificuldades eram imensas.

Um telefonema surpreende Sinfrônio com uma má notícia. Era a morte do pai, adoecido havia alguns meses. Afastado, havia tempo, daquela comunidade religiosa, ele resolve ir à igreja. Sua consciência estalou de arrependimento, não podia deixar de “encomendar” uma missa à alma do progenitor. Walkíria zomba dessa atitude, argumentando que ele nunca deu a devida atenção ao pai, porque era pobre, analfabeto e desconhecido de Pequena Londres, também, pouco se importava pela vida espiritual. O fato é que Walkíria acha “ironia” Sinfrônio ir à igreja somente nessa ocasião, pois era melhor, antes, livrar a comunidade daquele vulcão de imoralidade que afetava todos o seres da cidade.

Segundo o narrador, as personagens estavam todas comprometidas até o pescoço com pecados e ações pouco cristãs. “Não havia ninguém que pudesse atirar a primeira pedra”. Os pecados eram de todas as cores, de toda ordem, que faziam das personagens figuras sem remorsos, insensíveis ao arrependimento. Walkíria, personagem de pouca fé, dava testemunho de sua experiência, marcada por irreverência, desfaçatez da sensualidade feminina. Ela valorizava com “interessante ironia” o cinismo no relacionamento com o noivo, era uma estratégia para impor seu poder de adestramento sobre o noivo. Ele confessava sem escrúpulo sua dependência sexual, suas fantasias e desejos incomuns, e, por essa razão, permitia liberdade incondicional para Walkíria sentir-se satisfeita com a vida da melhor maneira possível.

Na igreja, local sagrado, Sinfrônio não escapa da necessidade de fazer uma profunda reflexão sobre sua vida, e é surpreendido por uma enxurrada de lembranças comprometedoras, das quais, luta constantemente para se libertar e interromper aquilo que vem na sua consciência involuntariamente. Ele está numa profunda mudez, ajoelhado e a lembrança do passado obscuro rouba-lhe aquele momento de paz e o obriga a um exame de consciência. Aguarda em silêncio o atendimento do padre Herman para sua confissão e posterior absolvição de seus pecados, que originavam sua freqüente crise existencial.

Contempla as lindas vidraças das janelas, doadas por fiéis. Mas, chamou-lhe a atenção uma em destaque vermelho, doada por um conhecido corretor da cidade, comprometido com corrupção e preso por estelionato. “Surpreso” com a “ousadia” da ação dos “pecadores” de Pequena Londres, Sinfrônio sente necessidade novamente de refletir, mas é censurado pela própria consciência. Convém não refletir, mas compreender a “realidade” histórica. Julgar a moral alheia dos “semelhantes” era como censurar a si mesmo. Melhor não questionar as boas intenções daqueles que ainda tinham esperança de se converterem em bons fiéis.

O padre Herman, segundo o narrador, se destacava por ser um autêntico liberal, aberto ao diálogo, formado por sólida e inquestionável experiência religiosa. Um modelo de pastor identificado com as “exigências da vida moderna”. Compreendia bem o ambiente de tristeza que dominava os fiéis. Solidário aos conflitos pessoais, sonhos assustadores e deslizes daqueles que procuravam se livrar dos “delírios demasiadamente humanos”. Um perfeito conselheiro das “almas pecadoras”, que recorriam a ele, mais por temor de sofrer um julgamento de aparências das personagens, do que por confessar arrependimentos de ações pouco lúcidas. Tratava os ricos e os pobres sem discriminação, sem relevância de pecados cometidos.

Dentro da igreja Sinfrônio se esforçava para rezar, ele sabia rezar! Como líder político, queria saber do padre o comportamento social e moral dos fiéis, observava o movimento na igreja, tecendo leves críticas às doações de vitrais para justificar comportamentos socialmente duvidosos. O personagem tem consciência de que está lidando com uma autoridade religiosa, que também é líder de uma complexa comunidade, cujas raízes se encontram esparramadas pela cidade sem um forte elo de identidade. Padre Herman tem a missão de unir essa identidade, dividida entre o mundo urbano e o rural. O próprio Sinfrônio é fruto dessa falta de raízes históricas, que permeavam toda a cidade nos anos 50 em Pequena Londres.

Em visita cordial, o personagem caminha da igreja ao cartório. Ali encontra o amigo notário Arconço Escuculha, um antigo conselheiro de confiança, reconhecido, segundo o narrador, como um “imperturbável moralista da província”. Encontrava nele a liberdade de confessar suas inquietações em relação à imoralidade da sociedade de Pequena Londres. Não convinha, na época, ter como inimigo as instituições policiais e o clero. Era melhor fazer a política da boa vizinhança com as autoridades, pois ninguém, sozinho, conseguiria restabelecer a ordem moral numa cidade que nasceu sem vínculos tradicionais sólidos. Necessitava de um esforço coletivo e dantesco, pois a agitada Pequena Londres não conheceu linguagem diferente, senão a da corrupção em todos os aspectos.

A personagem Arconço tem forte personalidade. Homem de decisão, foi um vencedor tanto na vida pública como na privada. Tinha conhecimento superficial de arte, filosofia, ética, política e psicologia social. Mas era personagem enigmática, inteligente e sobretudo moralista, caracterizado como o mais refinado avaliador de costumes em Pequena Londres. Por essa razão era tão requisitado por outras autoridades da cidade, que viam nele uma figura invejável, um modelo raro de personagem que lutava para manter as aparências. Tinha um defeito, era demasiadamente exibicionista, obsessivo por estranhas aventuras.

Seu cartório era um “formigueiro” de gente, ali se realizava de tudo: escrituras de terrenos, casamentos, juiz de paz, conselhos espirituais; era uma referência aparentemente segura. Interessante fato era que Arconço colecionava obras de arte. Nas paredes de seu cartório os fregueses podiam admirar quadros raríssimos, de estilo impressionista, como um Manet. Ele tinha a convicção de que suas pinturas eram originais. Claro está que como conhecedor de arte jamais poderia ser enganado por “espertalhões do pincel”. Na verdade suas obras eram reproduções baratas, mas adquiridas de boa fé. Original mesmo era seu retrato que tomava toda a parede atrás de sua mesa de trabalho. Nessa obra-prima ele aparecia sorridente de “sunga” sobre um indefeso elefante, “fugido de um circo” no Mato Grosso, revelando coragem e habilidade no adestramento de animais. Os fregueses achavam aquilo natural, pois estava acostumados contemplarem em Pequena Londres imagens ainda mais fortes e eloqüentes de estranhas aventuras dos homens do sertão.

Arconço possui um confessionário no cartório e Sinfrônio confessa que quer se casar. A cidade deveria ganhar uma primeira dama? Talvez. O fato foi analisado racionalmente, pois não convinha se precipitar diante de personagens com pouca lucidez. O progresso social de Pequena Londres transformava rapidamente o comportamento coletivo da cidade. As moças casamenteiras progrediram de modo irreconhecível, seguindo os rastros da evolução dos costumes daquele tempo. O narrador sugere paciência, uma minuciosa análise do momento atual. Arconço já havia dito há dez anos atrás que desaprovava o casamento de Sinfrônio por imaturidade do contraente, mas hoje mudou de idéia, concorda, sem restrição. Pois, há dez anos atrás Sinfrônio era pobre, analfabeto, um “zé ninguém”. Atualmente é prefeito, muito rico, com projeção política muito sólida. Administrador de uma cidade, apesar de provinciana, rica e próspera, abençoada pela terra roxa que produzia de tudo, atraindo gente de todo canto do Brasil afora, inclusive profissionais de diversas áreas.

Tiburcio Lastragol é um desses profissionais. Jornalista, atraído pela esperança de fazer fortuna, configurava a personagem mais cômica do enredo, segundo o narrador. Com cento e vinte quilos, recentemente chegado do Rio de Janeiro, veio tentar a sorte no sertão com o objetivo de montar um jornal e faturar muito dinheiro, procurava sutilmente um “lugar ao sol”. Cabe ressaltar que conhecia bem o ramo, mas não possuía capital, fato que o levou a se aventurar no campo da chantagem emocional, lançando-se como “conquistador” de moças insatisfeitas com maridos e noivos.

Apesar de gordo e muito feio, tinha a vantagem da “malandragem carioca”. Era bom prosador, de fácil lábia, enganador envolvente e especialista em chantagem amorosa. Esquentava relacionamentos amorosos desgastados pelo tempo e freqüentava constantemente o famoso Clube de Campo, onde se reunia a “fina flor da sociedade de Pequena Londres”. Ali conheceu Walkíria, que passava com freqüência por fases difíceis na relação com Sinfrônio. Logo, no primeiro encontro, se identificaram, desabafaram suas inquietações e confessaram segredos íntimos, como se conhecessem há anos. De cara, houve atração à primeira vista. Ele, sem dinheiro, buscava uma única oportunidade de se redimir da pobreza. Ela, infeliz, procurava “alguém” para preencher um profundo vazio em sua vida. Selaram um acordo de reciprocidade. Mas, Tiburcio buscava tão somente dinheiro, visando explorá-la pelas vias do prazer. A idéia era usar Walkiria como isca para angariar “fundos” junto ao prefeito, seu noivo.

Sinfrônio se empolgava com o surgimento de novos empreendimentos na cidade. De pronto, viabilizou o desejo de Tiburcio, emprestando-lhe um barracão abandonado e a promessa de alguma verba extra para dar início às atividades da empresa. O prefeito não tinha conhecimento e nem suspeitava da formação de um triângulo amoroso, do qual era apenas coadjuvante inconsciente. Já Tiburcio, como carioca malandro, exigia cada vez mais de Walkiria. Desejava um empréstimo impagável e ela, movida por uma chama ardente de desejo, não pode negá-lo, e, prontamente, providenciou quase um milhão de cruzeiros, quantia realmente alta. Tiburcio calculava minuciosamente o desenrolar dos fatos, atingindo seus objetivos, sem levantar suspeita na cidade. Imprimia em Pequena Londres um novo método: a chantagem – para participar na divisão do acúmulo de riqueza gerada pela rubiácea.

O projeto mais importante de Sinfrônio era seu casamento com Walkiria, fato que constantemente era adiado em decorrência dos sucessivos escândalos que pipocavam quase todos os dias na cidade. Pequena Londres passava por momentos delicados, à sua volta a corrupção impregnava todos os seguimentos sociais. Era impossível administrá-la com coerência. Como líder político, era necessário revelar transparência dos gastos públicos, convencer a população de que o progresso dependia do ritmo de trabalho e a cidade não podia ficar truncada por conta de escândalos históricos.

Um fato veio à tona na cidade, conhecido como o “escândalo do ano”. Tratava-se de um crime bárbaro, cometido por um Juiz de Direito. Crime dessa natureza não era comum em Pequena Londres. O Juiz assassinou com dois tiros na cabeça um ilustre advogado, motivado por um ódio monstruoso e por uma rara inveja intelectual. O juiz o tinha como desafeto no meio jurídico, não suportou tamanha humilhação profissional, uma vez que, o advogado vinha obtendo inúmeras vitórias em sentenças, quando eram reformadas pelo Tribunal de Justiça.

Esse negro episódio balançou as instituições conservadoras de Pequena Londres. Ninguém imaginava que a cidade, abalada por tantos escândalos de corrupção, pudesse ser surpreendida por um ato tão selvagem, de pura cegueira profissional. Despertou na sociedade um clamor de justiça, um sentimento de angústia, medo, enfim, de estranhamento em relação àqueles que tinham a função de defender a cidade. As personagens comentavam que a sociedade vivia num clima de “faroeste” e nada justificava um ato que manchava de sangue capítulos da estória da cidade A justiça estava corrompida pelo “triste espetáculo de uma burguesia decadente”. Sinfrônio foi quem mais sofreu com o crime, pois poderia até perder um novo mandato político, por não justificar os índices alarmantes de violência e crimes em Pequena Londres.

A repercussão desse crime tomou uma dimensão incontrolável. Foi noticiado pelos meios de comunicação em rede nacional e Pequena Londres ficou famosa nas manchetes dos jornais sensacionalistas de todo o Estado. Para atenuar a situação de temor e o abalo social, foi designado para substituir o juiz criminoso a personagem Dr: Leon Arrochelas. Ao desembarcar no aeroporto, o juiz substituto pressentiu um clima de profunda hostilidade à justiça institucional. Logo foi recebido numa tensa audiência com o prefeito. Conversaram abundantemente sobre a delicada situação de descrença da sociedade na justiça local. O novo juiz assumiu o compromisso com o prefeito de reerguer o moral e o prestígio da justiça em Pequena Londres.

Do encontro formal, a impressão que mais marcou Sinfrônio foi os gestos afeminados da nova personagem, concluindo, sem nenhuma dúvida que: Dr: Leon Arrochelas era um autêntico “pederasta de fidalga linhagem”. Não convinha ao prefeito julgar com preconceito a natureza homossexual do juiz, mas havia o receio de que o estranho comportamento de uma figura de largo poder pudesse influenciar naturalmente os costumes já corrompidos da virtuosa sociedade. A questão era: será o novo juiz um modelo implacável de prostituição dos costumes de uma cidade dividida entre o trabalho e a luxúria? De certo modo, não. Sinfrônio até simpatizou-se com a nova personagem, queria tê-la como aliada para vencer a terrível invasão de corruptos na cidade, também, para ajudar o prefeito a superar um difícil momento, o crime do advogado, tomado por revolta popular, inesquecível na memória do povo.

O juiz Dr: Leon, se estabeleceu com plenos poderes, revelando pulso forte para conduzir a cidade no caminho da civilização. Era necessário para ele demonstrar à população, lisura e celeridade em suas sentenças judiciais. Revelar que a justiça tarda, mas não falha, e para isso, devia ter sólidos argumentos, baseados em fatos e práticas de convencimento à sociedade. Era fundamental mostrar que a justiça, sem sombras de dúvida, se constitui numa instituição incorruptível, na busca da decisão jurídica para o bem da comunidade.

Leon Arrochelas surpreendeu a todos. Não suportou a tradição da sociedade baseada nas falsas aparências. Logo, também apareceu desfilando no footing da Avenida Paraná a tira colo, com seu jovem amante Dr: Adelardo Nobre. A quem caberia julgar esse fato? Todos ali torciam o nariz, mas não tecia comentário da vida alheia, principalmente de uma figura tão poderosa, aquele que devia preservar pelo bom costume da sociedade. Era pederasta, mas não criminoso, e isto era suportado pela sociedade. Dr: Leon buscava através do cargo se legitimar perante a população. Seu vínculo com o namorado não devia desabonar seu trabalho, que exigia transparência moral e confiança nos processos por ele analisados.

O jovem advogado Adelardo, aceitava a condição de amante da figura mais poderosa da província, mas exigia recompensa. O romance entre ambos era marcado por tensões. Dr. Adelardo exigia trabalho digno, ganho de causas, informações privilegiadas, enfim tráfico de influência, para se estabelecer como profissional competente. E, Dr. Leon devia dar sentenças favoráveis ao amante, a fim dele ganhar a cada dia mais notoriedade junto daqueles que viviam com pendências na justiça. Segundo o narrador, essa relação de interesse era despistada pelo juiz, cauteloso, tinha capacidade de controlar o desenrolar dos fatos de modo racional, para não expor a justiça novamente ao ridículo.

Sinfrônio não interferia nesse romance homossexual, aliás não tinha nada contra a opção sexual do juiz, desde que mantivesse a ordem e a esperança do povo pela justiça local. Estava mais preocupado com a realização de um antigo projeto de felicidade: o casamento com Walkiria. Entendia que se tornara um homem bem resolvido e preparado para o desafio de unir-se, por laços de amor, a uma jovem que tanto desejava.
Pequena Londres ganhou um feriado municipal para acompanhar o evento mais importante do ano. O prefeito estava se casando no civil e no religioso, era um orgulho para o povo e ao mesmo tempo um exemplo moral para a cidade. Realizou-se uma festa de arromba, inesquecível, recebendo ao enlace a mais fina “nata” da sociedade, que brindava com cristais importados aquele marco histórico. A cidade foi tomada por um sentimento de felicidade geral, que momentaneamente dava uma trégua nos sucessivos escândalos que movimentaram as relações sociais.

Em lua-de-mel, Sinfrônio tem sua primeira decepção: lhe é negado um herdeiro. Walkíria não pensa engravidar, quer manter por longo tempo aquele “corpinho” e a jovialidade. Em noite de núpcias oferece a Sinfrônio um pacote de camisinhas, numa atitude consciente de evitar a qualquer custo uma gravidez que não deseja. Ainda argumenta que um filho, poderia lhe impedir de certo modo continuar a gozar a vida com mais liberdade. Só resta a Sinfrônio o lamento pela decisão da mulher, mas não pensa contrariá-la.

Era natural que Sinfrônio expusesse a situação ao seu conselheiro, amigo Arconço. Sua vida começou a desmoronar emocionalmente. No Clube de Campo o amigo revelou a profunda infelicidade que Sinfrônio vinha sentindo, com a possibilidade da falta de um herdeiro. Walkíria era uma mulher moderna para os padrões da cidade. Tinha opiniões próprias, suas decisões geralmente eram definitivas. Um mês de lua-de-mel na capital cearense e já sentiam saudades de Pequena Londres, o calor humano da “aldeia”. Sinfrônio também estava preocupado com o trabalho, com o governo da cidade; ela não podia ficar tanto tempo sem um representante fiel, administrador de escândalos.

Na ausência de Sinfrônio, quando em lua-de-mel, o notário Arconço se ofereceu para assumir o controle dos sucessivos escândalos que não davam trégua em Pequena Londres. Como reconhecida autoridade, organizou um forte movimento para recuperar o “padrão moral do povo”. Sentiu-se capaz de pôr ordem e resgatar valores cristãos da sociedade. Como quase todas as tramas eram armadas no Clube de Campo, convidou para uma reunião extraordinária todas as correntes sociais mais preocupadas com o destino da cidade. O objetivo da reunião era decidir sobre duas questões imorais: reduzir o elevado índice de prostituição e acabar com os abortos ilegais. Todos presentes aprovaram as idéias de Arconço, que devia começar atacando esses problemas pela imprensa (marron), o Saturno, de Tiburcio Lastragol.

Arconço consultou formalmente Sinfrônio da necessidade de eliminar, de uma vez por todas, essas duas práticas, consideradas imorais pelo coletivo social. De imediato, Sinfrônio não deu o esperado apoio ao notário, pois era crucial analisar as conseqüências políticas dessa campanha. Naturalmente poderia lhe causar uma imagem negativa e de irreversível impopularidade. No calor da discussão, entre as autoridades de Pequena Londres, Dr: Leon viu uma oportunidade de se vingar das prostitutas, que lhe incomodavam em vários sentidos; não suportava as “doidivanas”, desfilando tranqüilamente pela cidade impunemente. Segundo o narrador foi o juiz o autor de uma autorização judicial ao delegado de polícia para humilhar as prostitutas da cidade: “Escoltadas por soldados, cinco prostitutas desfilaram pelas ruas centrais, levando no ombro um cartaz humilhante: somos prostitutas, vergonha da cidade”.
Aquilo soou mal, chocou e produziu um impacto estranho à sociedade que agora via a prostituição como raiz dos atos imorais praticados pelos cidadãos. Não convinha ao prefeito apoiar uma decisão de tamanha repercussão, ele assistiu como expectador indignado o desfile mais histórico da cidade. Entretanto o juiz continuava disposto a perseguir as prostitutas, repreendendo-as ferozmente, como principal inimigo dos bons costumes da sociedade. Por ordem do delegado as prostitutas também foram obrigadas a ficar carecas, impressionando ainda mais a população.

Todos os jornais locais noticiaram o fato, que foi considerado chocante. Muitos que por ali passaram, reconheceram nas “doidivanas” carecas momentos de prazer, provocando assim, um sentimento ambíguo, de cumplicidade à boa moral coletiva. Sinfrônio decididamente não gostou nada dessa atitude unilateral do juiz que, de certo modo, apimentava as relações sociais na cidade. Ele próprio não podia esconder seus pecados com o jovem advogado, estava totalmente comprometido com práticas imorais que manchava a imagem da cidade. Sinfrônio argumentava em defesa das “doidivanas”, pois prestavam serviços à sociedade, e guardavam segredos picantes e úteis da alta sociedade, sempre mantendo discrição. Por essa razão não se devia “cutucar a onça com vara curta”, para não ser surpreendido.

Na verdade, o prefeito exercia seu poder diplomaticamente, uma vez que não cabia a ele julgar as meretrizes. Ele sempre atuava como um verdadeiro “messias” que socorria as vítimas indefesas. Observando aquela situação cômica de escândalos na sociedade, Arconço se convenceu de que sua luta não estava surtindo o efeito esperado e desiste do gigantesco desafio. A atitude significou um “tiro no pé” dos moralistas de Pequena Londres. Houve uma reflexão geral, mas a sociedade não absorveu o fato como uma iniciativa de exterminar as práticas imorais da cidade. Pouco tempo depois, as meretrizes se viram livres para fazer o “trottoir” pelas ruas, com relativa tranqüilidade.

Esse acontecimento arruinou ainda mais o debilitado estado de saúde de Arconço. Ele se encontrava bastante triste diante da impossibilidade de dar fim às prostitutas carecas. Não sabia, ainda, que havia contraído um câncer maligno no estômago, restando-lhe só três meses de vida. Desenganado pelos médicos, sentiu todo seu esforço findar em vão. Já no leito de morte, confessou a Sinfrônio que desejava escrever um livro de memória, onde narraria toda a carreira agitada de notário da província. Sinfrônio achava uma idéia interessante, mas perigosa, pois suas memórias podiam revelar recordações e histórias pouco conhecidas em Pequena Londres. Não seria viável um homem que testemunhou várias décadas do progresso da cidade falar despreocupadamente sobre tudo que viveu e presenciou. Sensibilizada com o estado terminal de Arconço, a primeira dama Walkiria, sugeriu oportunamente a construção de uma estátua em praça pública do notário. Jamais o povo deveria esquecer esse pioneiro, reconhecido pela sua luta e pela prestação de serviços à comunidade. Arconço lutou contra seu último inimigo fatal, descansou suavemente, levando para a eternidade o sonho de ver seu busto de bronze numa praça qualquer, apreciado pelo povo de Pequena Londres.

O destino de Tiburcio Lastragol não foi surpreendente. Ele deixou o jornal, estava cansado de “se arrastar com miserável bem estar naquele monte de esterco que era Pequena Londres”. Não aceitou uma proposta de sociedade com Sinfrônio, preferiu vender o “Saturno” para um sapateiro recém chegado do sul do país. O jornalista também desprezou Walkiria, sugerindo fidelidade ao marido. Não estava disposto suportar uma mulher moderna e complicada. Preferiu se aliar aos contrabandistas radicados na “Ponte da Amizade”. Era muito mais lucrativo contrabandear wiske do Paraguai para o Rio de Janeiro do que produzir jornalismo marrom em Pequena Londres. Ele reconheceu que o tempo de Pequena Londres havia terminado, uma geração havia se acabado, por isso não havia mais razão de permanecer ali às custas de mulheres mal-amadas.

O narrador deixou que cada personagem tomasse seu rumo dentro do previsível, sem surpreender o desfecho da trama. Ao tirar de cena as personagens mais importantes do romance, sua intenção era apontar para a multiplicação de atos de corrupção que vinham sendo apresentados por uma nova geração. Diante de um novo cenário que vinha se desenhando com o progresso material da cidade, foi necessário fixar uma tabuleta na entrada da cidade: ‘IGUAL A VOCÊ AQUI TEMOS DEZ MIL, POR FAVOR, VOLTE’.

A Reconstrução Literária ...

A RECONSTRUÇÃO LITERÁRIA DE PEQUENA LONDRES
Edison Máschio e os Escândalos da Província


É aí que se estabelece a verossimilhança, isto é, coerência interna da obra, sintonizando-nos com o desenrolar da trama, sem precisarmos buscar situações reais e concretas. Ou seja: o que importa não é o grau de semelhança com a realidade, mas com as figuras criadas e como seus entornos são convincentes no interior da narrativa. Desse modo, notamos que: “verossimilhança (...) sempre resulta de um cálculo sobre a possibilidade de real contida pelo texto e sua afirmação depende menos da obra que do juízo exercido pelo destinatário. A obra por si não se descobre verossímil ou não. Este caráter lhe é concedido de acordo com o grau de redundância que contém”.(6)

A maneira pela qual os escândalos da cidade imaginária são apresentados e o elemento moral de cada personagem se constitui em possibilidades do real, que expressam o ponto de vista de uma experiência individual, da subjetividade de um ser. É natural para o ser humano que lê literatura, reconhecer a sua subjetividade em um ser humano fictício. As ações da personagem Walkíria são, sem dúvida, identificadas com uma multiplicidade de ações e, mesmo, desejos de muitas mulheres, em diversos tempos e espaços, sem, necessariamente, ser uma referência real com o que a personagem viveu no romance. Walkíria, enquanto figura criada na imaginação do narrador, não pertence ao mundo dos humanos, uma vez que se configura em personagens que retratam histórias humanas.

O narrador de Escândalos da Província é essencialmente objetivo, se constitui narrador-observador, conta sua história minuciosamente distante dos fatos; ele não participa de nenhuma ação, fica longe dos acontecimentos para ter o privilégio de narrar as emaranhadas situações e apresentar imparcialmente as personagens. Como ocorre com Sinfrônio, uma figura ambígua e indecisa, de pouco caráter. O narrador não tem conhecimento íntimo dessa personagem, protagonista do enredo, ele a apresenta como o anti-herói, característico de uma época, traça um perfil da moral e do sentimento expressado pelas atitudes dele. Ao imaginar uma hipotética cidade, insere paulatinamente as personagens de acordo com as transformações sociais ocorridas no ambiente urbano. Sinfrônio é produto do meio social que viveu, síntese de uma realidade imaginada pelo narrador. Como personagem fictícia é coerente com a situação histórica, da qual viveu intensamente no romance.

A situação histórica revelada por Máschio no romance, estimula sua criação literária no processo de re-elaboração dos episódios históricos apresentados: a ausência de raízes históricas culturais em Pequena Londres; a cidade que surgiu e cresceu com os abalos da corrupção, do forte interesse social de transformar “aventureiros” e “pistoleiros” em pioneiros da cidade.

Os principais episódios históricos como: o assassinato do advogado, o desfile das prostitutas carecas, o jornalista que virou contrabandista, o Juiz de Direito pederasta, que transformou o Fórum da cidade num mercado de prazer – todos esses episódios históricos são reconstituídos literariamente, ganham novas interpretações que enriquecem a historiografia local. Máschio sobrevoou além da imaginação uma cidade fincada em frágeis raízes, dando coerentemente sentido às ações das personagens. São elas, todas fictícias, que dão impulso aos movimentos sociais e aos acontecimentos em Pequena Londres. São elas que criam o panorama histórico da vida ali existente. Isto fica claro quando o próprio narrador abandona o personagem Sinfrônio, quando perde, momentaneamente, o controle sobre a cidade.

A figura Sinfrônio é a chave para entender todas as ações secundárias e também é a chave para conhecer de qualquer maneira a sociedade em todos seus dramas sociais e culturais. Aí reside a expressão significativa da personagem, pois a cidade depende daquilo que ele decide, daquilo que ele pensa, da administração de conflitos pessoais e não necessariamente de ações essencialmente políticas. Aliás, em Pequena Londres ninguém, aparentemente, estava interessado em política, são poucos os que revelaram vocação à carreira. O poder consistia na figura pessoal, naquilo que representava a tradição de mando e desmando numa sociedade em que a lei tinha pouco peso para as personagens. Daí suas ações serem ousadas e temerosas. As personagens acreditavam mais no poder da astúcia, no poder de fogo de cada pistoleiro do que propriamente no poder da justiça. Era, ainda, a tradição mantida em Pequena Londres que reconhecia as personagens por aquilo que desafiaram em suas vidas, e não por aquilo que se apresentavam no presente.

1º Texto >>> A reconstrução

A RECONSTRUÇÃO LITERÁRIA DE PEQUENA LONDRES

A RECONSTRUÇÃO LITERÁRIA DE PEQUENA LONDRES
Edison Máschio e os Escândalos da Província



Paulo de Tarso Gonçalves
Profº História
detarso10@hotmail.com


Quando o jornalista Edison Máschio produziu seu primeiro romance: Escândalos da Província, nos anos 50, Londrina passava por transformações históricas: urbanização da cidade, construções de obras públicas e elaboração de projetos modernistas ousados. Instalou-se um conjunto de mudanças na paisagem arquitetônica da cidade. Era fato constituído a imagem de um Eldorado, compreendido pelas boas safras do café, o que dava à cidade o status de rica, próspera e dinâmica. De certo modo, esta representação citadina alimentou desejos e ambições de muita gente que decidiu construir, aqui, seu projeto de vida. A contribuição de imigrantes e migrantes desse período foi crucial para a construção de um modelo citadino fincado na idéia de “progresso” e “trabalho”.

Foi esse ambiente de transformações sociais e urbanas, que permitiu a produção da matéria-prima para o romancista Máschio construir suas personagens de ficção. Claro está que a construção das personagens fictícias, foi elaborada artesanalmente e não propositalmente. Somente ao acaso, permite-se relacioná-las ao meio social pelas suas características particulares. Sabemos que a ficção é a vida que não foi, a que gostaríamos que fosse, que não teria sido ou que tornasse a ser, aquela vida sem a qual a que temos nos resultaria sempre truncada. Porque, “diferentemente do animal, que vive sua vida do começo ao fim, nós só vivemos parte da nossa”.(1)

A personagem da ficção tem vida própria, pensa, reflete, age, se emociona, enfim, na narração do romance ela está organizada de modo que parece interpretar fielmente tudo aquilo que pensamos e sentimos de verdade. Mera coincidência com a vida real. As personagens que protagonizaram o enredo do romance, Escândalos da Província, ganharam características peculiares, adquirindo no desenrolar da trama sua própria autonomia, permitindo ao leitor encontrar nelas uma realidade possível.

A realidade possível não significa vivenciar a realidade concreta, não é o propósito das personagens serem reais, tendo em vista que são construções elaboradas de uma experiência particular do romancista. Todas as personagens do romance são fictícias, ou seja, não existiram enquanto humanas. Os nomes, comportamentos, características, estados psicológicos foram inventados por quem narra uma estória. Portanto, “o abismo inevitável entre a realidade concreta de uma existência humana e os desejos que a sustentam e que jamais poderá aplacar, não é apenas a origem da infelicidade, a insatisfação e a rebeldia do homem”.(2) Daí que, a ficção é na sua essência mentir, enganar, criar mundos mais sórdidos ou intensos, diferentes daqueles que nos surpreenderam. Na ficção o mundo da personagem torna-se infinito, a vida aumenta, “um homem é muitos homens, o covarde é valente, o sedentário é nômade e a prostituta é virgem”.(3) Nela acabamos descobrindo a nossa essência, a nossa aparência, o modelo de humano que gostaríamos de ser.

O narrador de Escândalos da Província fala de uma personagem enigmática, o prefeito de Pequena Londres, um tipo de anti-herói comum na época das grandes transformações na cidade. Aos poucos a personagem vai se revelando numa “figura” enfeitiçada pelo ambiente social de seu tempo.

Esta personagem, que é a principal do romance Escândalos da Província, parece identificar uma multiplicidade de comportamentos adotados por indivíduos que faziam uso do cargo público para explorar moralmente a população de pequenas cidades do interior do Brasil afora. Mas, Pequena Londres é uma cidade imaginária, da mesma maneira, que seus habitantes são construções literárias realizadas pelo romancista, que a partir de uma experiência particular de vida estabeleceu um “retrato” fotográfico de uma cidade que devia ganhar um sentido literário, seja através da ironia ou da moral.

Nesse aspecto, é evidente que ao analisarmos a narrativa ficcional e as personagens da ficção entendemos que não se trata de uma reprodução da vida. Os elementos da ficção a contradizem, acrescentam o que na vida nos falta, possibilitando um sentido à experiência frustrante, transformando aquilo que é loucura e delírio em sensatez e segurança. As personagens de Escândalos da Província viveram este dilema. Elas documentaram de alguma maneira a história humana. Todas as suas façanhas, ilusões, traições, infâmias, inconstâncias exprimidas ali, foram inventadas porque os humanos seriam incapazes de vivê-los. Daí que, o narrador as transforma num protesto contra a leviandade da vida real, ele procura a qualquer custo enganá-la, esquivá-la e forjá-la.

Cada fato da vida, ou um fragmento da vida da personagem é amarrado no romance de tal maneira que, nos leva a ter a sensação de que aquela história realmente aconteceu. O narrador nos deixa livre para interpretarmos a realidade de cada personagem que ali aparece disfarçada. “A nossa interpretação dos seres vivos é mais fluida, variando de acordo com o tempo ou as condições da conduta”,(4) o que não ocorre com as personagens da ficção, se a compararmos o que nos é oferecido no romance.

No romance, as personagens não são referência concreta da realidade, elas se potencializam quando o narrador revela suas características e temperamentos, se transformando em figuras convincentes ao leitor, dignas de serem notadas pelas suas ações e inconstância. É o caso da personagem Walkíria Sardanapalo, “uma interessante hipócrita, contagiada desde tenra idade pelas más influências do ambiente social. Tinha uma educação fundida no vaso das misérias morais”(5). Seu desequilibrado relacionamento estabelecido com Sinfrônio, protagonizou todo o enredo, no qual a rede de relações construídas ali revelava um “mar de lama” que atingia a todos, como força magnética que puxava o bem e o mal para o abismo da moralidade social, sem distinção entre classes sociais. >>> continua

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Crônica como História - cont. 03

III

Sob a luz desses acontecimentos, “a estranha máquina extraviada”, dava sinais de ter habitado este solo interiorano. Num dia qualquer, mais de meio século atrás, a presença de algo estranho na cidade, aparentemente sem serventia alguma, aos poucos foi se revelando em imagem de culto e reverência. Dependendo da imaginação do leitor sobre o conto; a “máquina” ganhou várias representações: um indivíduo, um hábito, um objeto, um trambolho qualquer, que se tornou símbolo de modernidade, e por conseguinte uma referência desconhecida no cotidiano da comunidade. O não reconhecimento de sua origem, a sua inutilidade, a sua complacência à ordem social, levou o indivíduo ao exercício inconsciente do culto a algo desconhecido. A valorização quase religiosa dessa crença, provocou medo e ao mesmo tempo respeito; sendo que, caso fosse desvendado o segredo da “máquina” corria-se o risco de desencantar toda a tradição e aquilo que sempre habitou o imaginário social poderia cair no ridículo.

Nesse sentido alegórico o conto estabelece uma analogia com as histórias das crônicas londrinenses, sugere uma leitura sobre o significado do “culto ao pioneiro”, promovendo uma reflexão sobre a história da tradição local, de colonização recente. A “máquina extraviada” cria identidades em várias situações, podendo representar: os pioneiros, a off-set, “o pioneiro da imprensa”, a burguesia, ou qualquer outro elemento que, de uma ou outra maneira, invadiram um território estranho e modificaram os costumes locais, rompendo com a tradição e a história.

Em “O Narrador”, Benjamin lembra-nos que: “o cronista é o narrador da história. O historiador é obrigado a explicar de uma ou outra maneira os episódios com que lida, e não pode absolutamente contentar-se em representá-los como modelos da história do mundo”.(18)

Seguindo este pensamento, vemos a experiência deste narrador:

“Da conversa que mantive com o mesmo conclui ser uma pessoa deboa conversa , pouca roupa e sem vintém, mas com vontade devencer, entre os tantos milhares iguais que engrossaramdiariamente” (19)

O cronista menciona um “fait divers”, ocorrido na cidade que, aos poucos vai tomando uma dimensão de marco histórico, talvez digno de se inscrever na história. O fato inesperado de alguém vir de terras distantes e às vezes hostis aos costumes locais, causou um certo espanto, um estranhamento, mas, como caiu na graça do povo passou a ser admirado e reverenciado. A tradição local, que era resistente ao novo, algo, cede aos apelos da coragem daqueles que, de alguma maneira, se encaixavam num perfil de “bravura” e aventura. Explorar novos territórios era desafiar o imprevisto numa aventura arriscada e sem retorno. Daí que, alguns ganharam o status de pioneiro pelo sucesso obtido no desenrolar das aventuras e foram coroados pelo ideal burguês reconhecido pela comunidade local. O discurso do “progresso”, transmitido de geração a geração desde 1930, correspondeu ao desejo da busca pela riqueza, mesmo tendo que importar seus “pioneiros”. Como a lei era o lucro a qualquer custo, os pioneiros não se iludiram apenas com o café, já havia uma ampla visão burguesa preparando o terreno para diversificar a economia em vários setores, inclusive o da “prestação de serviços”.

Nesse sentido, todo indivíduo ao chegar à cidade, logo na entrada se deparava com uma enorme placa tomada pela seguinte mensagem: “VOLTE, IGUAIS A VOCÊ, AQUI, JÁ TEMOS 10 MIL.

Ao perceber aquela placa encomendada na década de 1940, permanecendo ali desatualizada pelo crescimento populacional de 1950, ficava uma sensação inóspita, com a propaganda e o delírio do poeta: “Promete e não recusa a todos os que a procuram – impulso e arrimo rijo – na mira do triunfo” (20). Era um exagero para quem sonhava se enriquecer milagrosamente. Durante alguns anos ela foi interpretada de várias maneiras. Para muitos anônimos, que buscavam uma vida melhor, era difícil acreditar naquele prejulgamento conservador. Era uma ironia para quem, saindo de uma condição desfavorável, muitas vezes, deixando grande prole para trás e atravessando o país nos rastros das incertezas, de repente, ser engolido por um outdoor severo e obscuro. Ninguém na cidade dava informações sobre quem o instalou. O povo jurava que não sabia de nada. O prefeito evitava dar declarações. Muitos paravam em frente desolados e ali refletiam.

Há neste episódio uma contradição em relação ao “progresso”. Nos anos 50/60, Londrina ainda atraía mão-de-obra barata à lavoura do café, mesmo monitorando os que aqui chegavam. Os controladores da cidade tentavam, de uma ou outra maneira dificultar a permanência desses trabalhadores anônimos por alguma razão. Provavelmente, aqueles que só tinham prole a oferecer à cidade não eram tão bem vindos. Outros não se adaptavam facilmente à terra roxa, “livre de saúvas”. O barro vermelho e as crostas de poeira também foram elementos que influenciaram no abandono das famílias da cidade. Como quer que seja, foram anos difíceis ao trabalhador comum, que via nesta terra uma oportunidade de ascensão social, que raramente acontecia. O slogan da propaganda do “ouro-verde”, onde se nadava em dinheiro, só enriquecia os colonos, os estrangeiros e os proprietários das melhores terras. O imobilismo social imperava, uma vez que era característica da sociedade interiorana de todo o país.

O poeta Baudelaire via a idéia de progresso como um “farol obscuro”, o progresso material jamais levou em conta o progresso humano e a felicidade. Como ser feliz no meio do sertão? Como ganhar dinheiro fácil e rápido através do trabalho? Como buscar um lugar ao sol, se ele é de todos? Baudelaire rechaçava essa idéia de progresso que prometia um mundo melhor aos homens:

“Esse farol obscuro, invenção do filosofismo atual, aprovadosem garantia da Natureza ou da Divindade, essa lanternamoderna projeta trevas sobre todos os objetos do conhecimento;a liberdade se esvai, o castigo desaparece.Quem quiser ver com clareza na história deve, antes de maisnada, destruir este farol enganador...” (21)

Essa crítica áspera à idéia de progresso para burguesia, que identificava a riqueza material com o progresso humano, correlacionava, aquela promessa ilusória de que o desenvolvimento tecnológico promoveria também o desenvolvimento social. Esse “farol obscuro”, aliado ao pensamento dominante da burguesia, presente em todos os países capitalistas do mundo, criou mais divisão e distanciamento entre ricos e pobres, principalmente em regiões de colonização recente, como aqui, que se caracterizou como uma extensão do capital inglês.

Londrina não nasceu e cresceu com os braços abertos como os do Cristo Redentor da cidade maravilhosa, uma vez que a burguesia local, exploradora do capital inglês, tratou logo de ocupar todos os espaços, privados e públicos, estabelecendo domínios em todos os aspectos da cidade: social, cultural, econômico e político. O famoso cartão-postal, de pouca cordialidade, demarcando os limites da cidade, símbolo da pura ironia, comunicava a todos os anônimos a intolerância do poder local em relação às práticas e métodos para o enriquecimento. Dava-se o tom da verdadeira acolhida: “esta terra já tem dono”.

Destacando essa idéia de progresso em Londrina, podemos entender que ela esteve fortemente enraizada na busca de se criar um ambiente comemorativo de reconhecimento ao “culto ao pioneiro”. Este, identificado com algum fato histórico relevante ocorrido na cidade. Os anos 50/60 foram ricos em eventos sociais e culturais, transformando o meio urbano num espetáculo da modernidade. Os elementos da modernidade estavam vinculados às demolições de velhas moradias, dando lugar aos novos e imponentes casarões. O moderno também era simbolizado pela introdução de tecnologias de construções verticalizadas. Londrina teve pressa em construir o seu primeiro edifício, na década de 1950. Era um claro desejo de não parar no tempo. Por outro lado, o predomínio do mundo rural começava a desaparecer, surgindo novos problemas de convivência do indivíduo inserido numa coletividade, característico do meio urbano.

Nesse sentido, a importância do “culto ao pioneiro” é de tamanha expressão que, por falta da preservação original de objetos, artefatos, construções e até homens precursores da história local, buscou-se uma classificação de determinados indivíduos “vencedores” , não necessariamente precursores de uma tradição histórica, justificando dessa forma que o pioneiro é aquele que ficou rico porque trabalhou, sobreviveu e construiu a cidade. A par disso, a memória escrita se encarregou do coroamento dessa história de vencedores. A sua preservação foi feita por várias revistas e jornais, comprometidos com a boa e generosa imagem da elite, conservando simplesmente à eternidade o culto das personalidades da societé londrinense. Isto foi confirmado por inúmeras revistas fundadas nesta época. Entre tantas, o lançamento de uma em 1948, com o sugestivo nome: “A PIONEIRA, o retrato do Norte do Paraná” era justificada pelo seu fundador como: “Londrina comporta uma revista de classe”, símbolo do glamour da classe burguesa, essa revista circulou na cidade durante alguns anos, mas como Londrina não lia revistas parou de circular. Seu fundador retornou a São Paulo, sua terra natal, mas deixou aqui o registro de ações burguesas que contribuíram para difundir a idéia de modernidade, respaldada no progresso daqueles que aqui se enriqueceram.




NOTAS BIBLIOGRÁFICAS

1 - ARRIGUCCI Junior, Davi. Enigma e comentário-ensaios sobre literatura e experiência.
São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p. 51.

2 - op.cit p.53.

3 - ZORTEA, Alberto João. Londrina através dos tempos e crônicas da vida. São Paulo.Ed. Juriscredi Ltda, 1975. p. 154-155.

4 - LE GOFF, Jacques. História de memória. São Paulo. Editora da Unicamp, 2003.Pgs. 469-470

O historiador Lê Goff, sintetiza o conceito de memória coletiva no mundo contemporâneo argumentando que: “a memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia. Mas a memória coletiva é não somente uma conquista, é também um instrumento e um objeto de poder. São as sociedades, cuja memória social é, sobretudo, oral ou que estão em vias de constituir uma memória coletiva escrita, aquelas que melhor permitem compreender esta luta pela dominação da recordação e da tradição, esta manifestação da memória.

5 - MARINÓSIO Filho/MARINÓSIO neto. História da Imprensa de Londrina: do baúdo jornalista. Londrina: Ed. UEL, 1991. p. 47

O uso do termo imprensa hegemônica se refere a Folha de Londrina, que desde sua fundação em 1947, já se considerava como um jornal qualitativamente melhor que os outros existentes na cidade. Esse fato é confirmado pelo jornalista Marinósio Trigueiros Neto no estudo que realizou sobre a História da Imprensa de Londrina, revelando sobretudo a luta pela sobrevivência dos principais jornais que apareceram na década de 50/60. Nesta época “eram comuns as rixas e tertúlias” entre os mesmos, merecendo editorial em 14 de Janeiro de 1952:

“Hoje o nosso comentário do dia está reservado de pleno direito ao imbecilizado colunista de um certo jornal local, de há muito conhecido pelas suas antipáticas atitudes. Esse cavalheiro cujo nome por um dever de profilaxia moral nos abstemos de escrever, insiste em fazer jus aos minguados cruzeiros – que nem sempre recebe – fazendo críticas desprovidas de todo e qualquer senso”.

A Folha de Londrina não se envolvia publicamente nessas polêmicas, pois considerava-se acima desse nível jornalístico.

6 - ROLIM. Rivail Carvalho. O Policiamento e a ordem: histórias da polícia em Londrina
1948-1962. Londrina. Ed. Uel, 1999, p. 07

7 - ALONSO, Eduardo. Londrina 60: Crônicas de ontem e hoje.: Londrina. Grafmark,1994. p. 131.

8 - SCHWARTZ, Widson. Poder emergente no sertão: Londrina. Ed. Midiograf, 1997.p. 69.

9 - ZORTÉA, 1975, op. Cit. P. 180 crônica datada de 26/08/1971.

10- VEIGA, José J. A estranha máquina extraviada:contos. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. p. 90-94.

11- ROLIM, op.cit.p48

12- ALONSO, op.cit p.24 – o autor do poema é o poeta Francisco Pereira de AlmeidaJunior.

13- ZORTÉA, op.cit p. 182.

14- LE GOFF. Op cit. Citado da obra de Foucault (1969 p.131) na p.536

15- LEGOFF. Op. Cit. p. 536.

16- SCHWARTZ, op.cit p. 170.

17- FAUSTO. Boris (org) História Geral da Civilização brasileira. 3 ed. Rio de Janeiro,Bertrand Brasil, 1995. t. III, v 4, p 91.

18- BENJAMI, Walter. Magia e Técnica, arte e política: São Paulo: São Paulo. EditoraBrasiliense, 1985 p. 209.

19- ZORTÉA, op.cit. p.182.

20- ALONSO, op. Cit p. 16

21- BAUDELAIRE, Charles. A modernidade de Baudelaire/apresentação de TeixeiraCoelho: Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1988. p. 36.

*Os romances Escândalos da Província e Raposas do Asfalto, do escritor Edison Máschio foram publicados em 1959. Traçam uma imagem verossímel do contexto cultural da sociedade da época. São caracterizados como ficção, narrativas que configuram as relações sociais, valores, costumes e diversos símbolos da modernidade em Pequena Londres.

** Barriga Verde é um apelido dado ao Regimento do Governador da ilha de Santa Catarina de 1739. Este Regimento era composto por soldados artilheiros e fuzileiros que defendeu a ilha catarinense de várias invasões estrangeiras. Recebeu a alcunha, devido ao peitilho verde característico do seu uniforme. Como provas de lealdade, coragem e disciplina, galhardia e honradez se tornou motivo de orgulho do povo catarinense. Ainda hoje, este povo é conhecido por este apelido que tem um sentido de heroísmo.

Crônica como História - cont. 02

II
Ao analisarmos o caráter moderno da história de londrina, levaremos em conta o conjunto dos acontecimentos históricos dos anos 50/60. É sabido que lá se formou uma sociedade heterogênea, a qual muitos pioneiros foram escolhidos a dedo pelos exploradores ingleses, levando à elitização de uma pequena camada de colonos e a proletarização do restante da sociedade. Era a condição para alcançar o sucesso rápido do progresso, garantido pela praticidade do enriquecimento milagroso.

Decorre disso que, qualquer novidade que fosse ao encontro do progresso significava um marco histórico. Com a fundação da imprensa não foi diferente.O nascimento da Empresa Jornalística Folha de Londrina, que impulsionou a comunicação no Norte do Paraná, representou uma nova era da comunicação: a cultura de massa. Mas isso, ao mesmo tempo soava estranho, tendo em vista o fato de que Londrina não registrou no passado uma tradição cultural erudita. Não era nem mesmo possível fazer um contraste entre cultura de massa e cultura erudita. Historicamente aqui predominou somente a cultura agrícola, devido à sua identidade com o ambiente social daquela época. Então pressupõe que o nascimento prematuro do jornal vinculava-se mais ao caráter aventureiro de um investimento de risco qualquer, do que um projeto cultural de um povo com tradição letrada. Seja como for, fundou-se a empresa em 1947 e ela cresceu, resistindo a chuvas e trovoadas, isto é, às crises de conjuntura nacional dos anos 50/60.

O plano nacional dessa época coincidiu com a ascensão do segundo mandato do governo Vargas, que havia claramente optado pelo seu nacionalismo estatal, recorrendo ao capital nacional para promover o desenvolvimento econômico do país. Foi nesse período que Vargas criou a estatal Petrobrás e propôs um reajuste de 100% no salário mínimo, mas não suportou a pressão da oposição de Carlos Lacerda, de militares e do setor empresarial. Sentindo a iminência de um golpe de Estado suicidou-se em 1954.

Neste contexto, a instabilidade política do país e o suicídio de um presidente popular provocou uma expressiva comoção do povo londrinense. A Folha noticiou esse fato, inclusive com fotos de Getúlio em manchete. Vargas era considerado o “pai” dos pobres e o londrinense não tinha dúvidas disso. Embora estivesse comprometido com as elites brasileiras, seu populismo criou raízes e fez carreira aqui e em vários Estados do país.

Não se podia esperar desse cenário histórico algo diferente, senão uma desolação total do povo londrinense, que tinha uma relação afetiva com os políticos nascidos do povo, com o carisma hipnotizante de políticos simpáticos à causa franciscana. Aqui este fato foi sentido e levado a sério, devido à grande presença do “quererismo” varguista – movimento político pedindo o retorno de Vargas à presidência - além de não se conformarem com a perda do “pai”, também entendiam que Vargas simbolizava a “mãe” dos ricos e é sabido que a “mãe” é mais generosa, de qualquer forma ambas classes sociais haviam ficado órfãs de um mito político.

Mas este luto durou poucos anos, até a chegada definitiva de uma corrente política partidária que levou até as últimas conseqüências a arte de governar a cidade junto com o povo. Este é um capítulo a parte da história de Londrina.

Por outro lado, a década de 50/60 ficou conhecida por uma forte crise na lavoura, ligada a falta de trabalho e más condições de vida dos agricultores, gerando um grande êxodo rural. Na verdade foi uma década de crise em todos os aspectos. Aquela que mais ameaçava Londrina era a do transporte ferroviário, o principal ícone da modernidade. Dependia dele o escoamento de toda produção de alimentos. Constatado um boicote da Rede aos empresários locais, acabou faltando locomotivas e vagões e a cidade ficou num “deus-dará”. Além disso colocou em risco aquele projeto de progresso que não podia morrer. A cidade não podia parar por causa da conhecida “guerra dos vagões” ( 8 ) A saída encontrada foi a abertura de duas pontes sobre o Rio Paranapanema, que aliviou o escoamento da produção de cereais.

Outro fator da crise dos anos 50 foi provocado pelo fluxo migratório que se encontrava a todo vapor, gerando grandes problemas à cidade. Era necessário avaliar criteriosamente todos os candidatos, aceitar ou não aqueles que vinham com “boas” ou “más” intenções conhecer o progresso londrinense. Havia uma espécie de olhar que vigiava as ações dos recém-chegados, uma maneira de controle social comum em pequenas cidades do Norte do Paraná. De qualquer maneira todos eram bem vindos, pois ninguém podia ser acusado antes de cometer algum crime. Na verdade não havia impedimentos a um cidadão comum do mundo desembarcar apenas com uma sacola na estação rodoviária, ainda mais, recém-construída pelo famoso arquiteto João Batista Vilanova Artigas, um expoente da arquitetura nacional. Aliás um imponente monumento que se destacava com suas “abóbodas”, viradas no sentido oposto ao centro da cidade. Era algo realmente moderno e grandioso que, de certa forma, tinha uma semelhança metafórica com a cidade. Aquelas formas de arcos inclinados e virados ao encontro do horizonte infinito também simbolizavam que aqui em Londrina o céu era o limite.

Neste clima eufórico de fluxo migratório, temos a notícia da chegada de mais uma personagem que “buscava um lugar ao sol”. Com um olhar clínico e aburguesado noticiava o cronista:

UM BARRIGA** VERDE NO NORTE DO PARANÁ“

Certo dia de 1947 aparecia aqui mais um inconformado com a rotina. Tratava-se do barriga-verde João Milanez.Cansado da pasmaneira e estagnação de sua terra natal, Meleiros (sul catarinense) resolveu tentar a sorte em novas regiões e aqui bateu.Já em Londrina, buscou a Associação Comercial de Londrina e a mim, na qualidade de secretário administrativo daquela entidade.Da conversa que mantive com o mesmo conclui ser uma pessoa de boa conversa, pouca roupa e sem vintém, mas com vontade de vencer, entre os tantos milhares iguais que engrossavam diariamente.

Sem sombra de dúvida, era uma pessoa bem-humorada, disposta a conquistar um lugar ao sol. Nestas plagas norte-paranaenses.
Consultou-me na possibilidade de montar uma oficina de carpintaria e marcenaria – para batentes e portas.
Animei-o de que se tratava ser negócio oportuno e de demanda na praça.
Seria uma boa indústria para a cidade que nascia vertiginosa com suas construções cada vez em maior número.
Interessei-me pelo assunto e pelo novo amigo.Juntos, procuramos vários prédios, para a instalação da novel oficina. Estava tudo visto e bem encaminhado, para a concretização do ideal do barriga verde.
Bem moço ainda, altura média; louro, com ar risonho e desembaraçado, demonstrando energia e dinamismo, de olhar vivo e penetrante. Tipo decidido e irresignado com a rotina, característica do pioneiro.
Como se viu, ficou tudo bem acertado a respeito da instalação da carpintaria.Passados alguns dias, o homem voltava à Associação Comercial.
- Boa tarde, Zórtea
- Vim lhe dizer que mudei de opinião. Em Londrina existem muitas oficinas de batentes e portas. O negócio não é bom. Resolvi coisa diferente: vou botar um jornal. Há falta na cidade. Tenho até nome: FOLHA DE LONDRINA. Vai ser pra quebrar, como diz a gíria. Vai ser sucesso pode contar!
- Escuta aqui Milanez: de oficina de carpintaria para jornal tem uma grande distância!
Você não é jornalista e sim carpinteiro. Como é que vai ser a coisa, então!
- Olha Alberto, sou homem para qualquer coisa, ouviu?- E se pôs em campo.
- Arranjou dois linotipistas, depois de comprar pequena tipografia e seu material.
Tudo na base da compra a prazo.
- Começou a imprimir o seu jornal A Folha de Londrina. O nome era sugestivo e a simpatia do moço proprietário infundia confiança.
A coisa rodou...
- No princípio tudo foi difícil, porém, como o correr dos anos o diário prosperou extraordinariamente, enriquecendo seu dono.
- Fez milagres o senhor Milanez. Conseguiu transformar o jornaleco num grande órgão de divulgação, um dos melhores hoje do Paraná e quiçá o mais aparelhado tecnicamente.
- O jornal circula por todo o Paraná e São Paulo.
- Não devendo o seu feitio aos melhores do país.
- E comercialmente falando, então, fatura uma nota que não tem tamanho!
- Com tudo isso, o Milanez se tornou homem importante econômica e intelectualmente.
- Já entrevistou meio mundo, inclusive o Presidente Kennedy.
- Andou pela América Latina, Europa, Estados Unidos e Canadá.
- Não só provou que é capaz de tocar qualquer coisa como se tornou um dos mais lídimos representantes da boa imprensa nacional.
- A sua estrela brilhou nos céus de Londrina.” ( 9 )

Há um conto, de J.J.Veiga (10), “A Estranha Máquina Extraviada” que de alguma forma tem uma semelhança com esta crônica. O narrador deste conto noticia um acontecimento surgido na província que trata do aparecimento de uma exuberante máquina, deixada na calada da noite por estranhos e rudes homens, em frente a Prefeitura. Ninguém sabia ao certo quem havia encomendado e nem para que ela servia. A máquina passou a ser admirada pelo povo e por uma legião de visitantes que vinham de regiões distantes e ninguém podia tocá-la, instalando-se assim um mistério. A par disso, a máquina passou a operar milagres, mudando os hábitos, as conversas, os interesses da comunidade interiorana. A máquina não tinha nenhuma função, era como um Besouro de ouro, ficava ali, como uma esfinge, cultuada e reverenciada, de modo que toda a vida social da comunidade interiorana gravitacionava em torno dela. A máquina, porém, não podia ser despojada do encantamento que motivava a cidade.

Esta alegoria revela o quanto o progresso e a tecnologia causam estranhamento ao homem comum do sertão, e este fato aconteceu naturalmente em pequenas cidadezinhas interioranas do país afora, pois a chegada da técnica, de novos artefatos e instrumentos começou a perturbar todo o imaginário social local. As pessoas humildes, constituídas por valores arraigados no passado, através dos quais são modeladas suas identidades, acabaram não se comunicando com as novidades trazidas pelo progresso. Daí emergir estas inusitadas relações do homem do sertão com algo novo, com as “máquinas” que invadiram as províncias, sem conhecerem sua função e utilidade, só o fato de estarem presentes na cidade, provocaram mudanças e tensões nas relações sociais da comunidade.

Nesse sentido, há uma semelhança do conto de J.J. Veiga com a crônica, destacada pela conversa entre o cronista e o futuro empreendedor do sertão londrinense. Qual não foi o espanto do cronista ao receber a notícia de um carpinteiro que, em “busca de um lugar ao sol”, decidiu praticamente do “nada”, construir uma empresa vinculada aos serviços de divulgação de idéias de formadores de opiniões. Provavelmente houve um choque cultural entre esta decisão e a comunidade de leitores da época, pois um “carpinteiro barriga verde” (ele não era pé vermelho) transformara-se, da noite para o dia, num empresário das comunicações, senão no “pioneiro da imprensa” de segunda geração. Mas, antes é preciso focalizar nesta narrativa, a sondagem realizada no mercado pelo futuro empreendedor, no qual analisou minuciosamente a vantagem de investir num “formigueiro” bastante explorado. Decidiu não travar concorrência desleal (para ele) com os paulistas e mineiros, conhecidos como habilidosos no ramo, pois dominavam o mercado madeireiro desde a década de 1940. A desistência do ofício de marceneiro e a descrença no negócio de carpintaria abriram-lhe as portas para os meios de comunicação.

Não era estranho o fato de muitos profissionais liberais trafegarem, nos anos 50, de um ramo para outro. Não sabemos, por falta de registro ou mesmo “documentos”, se isso ocorria também na área médica (aí seria um Deus nos acuda). O fato é que a fundação da Universidade de Londrina só foi viabilizada em 1956, e, ainda assim com apenas quatro cursos, graças ao esforço do Professor Zaqueu de Mello, que ao se tornar Deputado Estadual conseguiu aprovar seu projeto junto à Assembléia Legislativa. Nesses anos, os filhos da burguesia sofreram um pouco, pois quem pretendesse cursar uma Universidade precisava se deslocar para as metrópoles brasileiras, decorrendo daí, mutações nas relações familiares. Ao estudar fora da província, esses filhos retornavam à cidade meio rebeldes, com “outras cabeças”, isto é, com comportamentos culturais muito avançados e às vezes estranhos a uma comunidade acostumada ao silêncio da vida.

Apesar dos esforços e do clamor burguês local, o cronista reconhece que, através do “trabalho” era possível vencer as “forças brutas da natureza”. Nesses anos, o que mais identificava um trabalhador era a sua capacidade, disposição e vontade. Se auto-intitulava “homem para qualquer coisa”. Provém disso que muitos prédios e residências foram construídos apenas com a experiência desses homens em noções gerais sobre obras. Mesmo sendo rara a existência de um engenheiro de formação acadêmica, até o momento não temos notícias de desmoronamentos ou implosões de prédios construídos nessa época.

Além do fator “concorrência” não se podia negar o jogo político, como declarou um pioneiro do “tempo das onças”, aliás amigo de Vargas, que “a política é uma bola de cristal e um dado nas mãos”. Era preciso saber jogar, movimentar as peças, acertar nas escolhas. Investir num negócio de carpintaria era como chover no molhado. Todos os trabalhadores do sertão eram experts no ramo, uma vez que, numa região de colonização recente, quem não erguia sua própria casa, dormia no mato. E, nesse tempo, não era raro encontros desagradáveis com felinos selvagens. Daí que, “montar” um jornal era desejo de profundo exibicionismo do progresso, das máquinas, do poder, da cultura e do controle de ideologias. A intenção de “prestar serviços à coletividade”, de fato incomodava a todos. Aliás nos anos 50, quem não prestava algum tipo de serviço era visto como uma “raposa do rabo felpudo” que simbolizava a “picaretagem”, conceito que teve sua época de ouro, uma vez que, este era entendido como uma ação ética quase suportável pelo corpo social.

Esta ética de “prestação de serviços à coletividade” ganhou impulso e notoriedade, haja visto que, nos porões luxuosos das “casas de shows noturnas” era seguida religiosamente. A famosa “Zona Proibida”, que foi cartão de visita da cidade, chegou a ser legalizada por pressão popular, pois além de criar inúmeros postos de serviços era um dos poucos lugares de “lazer saudável”, mas havia quem a reprovasse. Segundo um historiador “pé vermelho”, os jornais davam ênfase ao desembarque nessas terras de uma “avalanche de meretrizes que tomou nossa cidade de assalto e está alastrando por toda a cidade. Nada menos de 6.000 doidivanas, sem nenhum exagero invadiram Londrina( 11 ). Apesar dessa constatação, o poder público fazia vistas grossas, afinal de contas eram “prestadoras de serviços” e nenhum “trabalho digno” devia ser ignorado pelos controladores da cidade. Além disso o comércio do sexo movimentava a economia, gerava impostos e ajudava potencializar o marketing do progresso e do turismo internacional, pois Londrina tinha o privilégio de ser reconhecida mundialmente pela produção de “mercadorias de luxo”. Até a construção, do aeroporto em toque de caixa, o terceiro maior do país em movimento, era condição indispensável à sua sobrevivência econômica.

Este processo histórico é comprovado pelo fato de os proprietários das boates que gozavam de “beneplácito das autoridades”, não raro, eram figuras mais solicitadas nos altares religiosos. Muitos casamentos, denunciava um moralista, contavam com a presença honrosa desses indivíduos como padrinhos de cerimônia, uma vez que, o sonho dessas “meretrizes” era constituir família e conquistar um “lugar ao sol”. Naturalmente muitos filhos legítimos ou ilegítimos dessa época poderiam ter reconhecidas suas duplas cidadanias, um status importante concedido por ocasião de provas de hereditariedade consangüínea, determinando assim, com mais celeridade as árvores genealógicas dessa gente. Destacaríamos as duplas cidadanias com mais candência, a inglesa, a espanhola, a italiana, a libanesa, a alemã, a japonesa, a portuguesa, a africana, a paraguaia, a sueca, a indiana etc. É daí que nasce a nossa miscigenação e aculturação , comprovada num poema em homenagem a Londrina:

“Londrina, cidade de braços abertosa todos os filhos do nosso Brasile a todos aqueles de Pátrias distantesque aqui confiantes,sob um pálio anil,seu lar construírame aos filhos se uniram,de nosso Brasil” ( 12 )

A existência dessa complexa mistura, dessa miscigenação cultural dá a Londrina uma certa identidade, mas cabe aos pioneiros de primeira e segunda gerações e a multiplicidade de nações estrangeiras explicar a verdadeira origem dessa gente, que de alguma maneira sofreu, desde os tempos dos destemidos bandeirantes, uma profunda crise de identidade.

Criou-se, assim, um clima cosmopolita, graças a este cruzamento inter-racial e a adaptação e boa convivência entre essa diversidade cultural. Viabilizou-se uma sociedade aparentemente pacífica. Desse “caldeamento” de cultura, Londrina se beneficiou do empenho no trabalho desses povos “invasores”, quase todos vocacionados naturalmente à “prestação de serviço”. A idéia de ser “homens e mulheres para qualquer coisa”, apenas consolidou um desejo comum à todos: receber a graça de um milagre – o dinheiro. A maioria dos indivíduos de várias procedências, pouca instrução, fincou aqui suas raízes e sonhos, mas apenas uma minoria viu o futuro glorioso chegar, isto é: “o sorriso do dinheiro”.

O “pioneiro da imprensa” foi uma dessas exceções exímio “prestador de serviço”, como declarou o cronista: “Ele fez milagres”, não o recebeu. Em época de crise era consenso local recorrer aos fenômenos sobrenaturais, daí que, Londrina também desenvolveu uma forte vocação à fé religiosa, uma vez que a quantidade impressionante de igrejas sinalizava já uma preocupação dos fiéis com o destino de suas atitudes em busca do juízo final. Claro está que, ao longo do tempo veio se multiplicando em ritmo irrefreado um número incalculável de franquias e extensões de denominações religiosas nunca vistas pela tradição conservadora da cidade.

Além de sua vocação espiritual, os controladores locais, mantinham um procedimento bastante usual de “batizar” os futuros empreendedores. O “pioneiro da imprensa” não escapou dessa prática, era ritual válido, analisar as aparências, as características pessoais e fisionômicas do “pioneiro ideal”, que seguia um modelo padrão, declarava o cronista: “Bem moço ainda, altura média; louro, com ar risonho e desembaraçado, demonstrando energia e dinamismo, de olhar vivo e penetrante. Tipo decidido e irresignado com a rotina, característica do pioneiro” ( 13 ). Essa característica do pioneiro londrinense vinculava-se ao modelo europeu do homem viril. De certa maneira, houve uma injustiça irreparável com a cultura afro-brasileira local, da qual Londrina tem uma dívida impagável, por não mencionar historicamente a contribuição expressiva dessa gente, que também produziu representantes que imprimiram seu modo de sobreviver diante do sucesso e progresso da cidade. Há ainda carência de estudos históricos da cultura negra, dos pioneiros negros, que por alguma razão foram apagados ou mesmo “esquecidos” nos arquivos e registros do “culto ao pioneiro.”

Nesse contexto, compreende-se que o caráter do pioneiro, escolhido a dedo pelos ingleses nos primórdios da colonização, evoluiu-se para um critério subjetivo de análise da performance do indivíduo. Além disso era indispensável aptidão ao trabalho e capacidade de inovar. Portanto, foi a burguesia local que determinou o modelo ideal, o tipo do homem que devia herdar esse título, tradição conservada que, após mais de meio século, ainda se cumpre a cerimônia política de conceder títulos de “cidadãos honorários” aos “grandes prestadores de serviços à sociedade”. Falta à memória coletiva local, um monumento homenageando os verdadeiros “peões do café”, lembrando os trabalhadores comuns. Estes ao morrerem levaram consigo toda uma história não preservada, merecendo ser resgatadas do fundo dos túmulos mais antigos da cidade. A riqueza deixada por esses trabalhadores, decorrente da conquista do progresso material também pertence às gerações seguintes, legítimas herdeiras de uma memória, cuja tradição sempre vinculou à esperança de um progresso social.

Essa tradição de preservar a memória é crucial. Foucault declara que os problemas da história podem se resumir numa só palavra “o questionar do documento”. E logo recorda: “o documento não é o feliz instrumento de uma história que seja, em si própria e com pleno direito, a memória: a história é uma certa maneira de uma sociedade dar estatuto e elaboração de uma massa documental de que se não separa” ( 14 ). No entanto a crônica como um tipo de documento, um registro do passado, é uma representação da história local da época em que foi produzida, servindo como conservação de um passado, memória individual que busca fazer síntese dos acontecimentos históricos. Todavia a memória, “na qual cresce a história, que por sua vez alimenta, procura salvar o passado para servir ao presente e ao futuro. Devemos trabalhar de forma que a memória coletiva sirva para a libertação e não para a servidão dos homens”( 15 ).

Nesse sentido, ao reconstituirmos o vivido do passado no presente, notamos que o personagem “pioneiro da imprensa” é uma síntese de um conjunto de indivíduos que, pela sua identidade revelada pelo cronista, vinculava-se a um ideal burguês, elaborado por uma tradição cultural, guardiã e dominadora da memória coletiva. Daí esse modelo ser referência de um padrão determinado por uma elite local. Não é sem razão que lhe foi conferido o status de “pioneiro da imprensa”, o que possibilitou a preservação da memória escrita, cuja função é o de resguardar uma história construída por vencedores.Resultado disso é o fato de que na luta de classes, permanece a memória dos acontecimentos manipulados pela elite para legitimar o poder e o domínio da burguesia, enquanto precursora do progresso social.

Quando a “estrela do pioneiro da imprensa brilhou nos céus de Londrina” aqui já havia se consolidado o projeto burguês de cultura, a memória dos desbravadores, o discurso sobre o social, e os elementos que, de alguma maneira, correspondiam ao marketing da cidade do café. Nessa época, Londrina se destacou ao ponto ser passagem obrigatória dos candidatos à presidência da República. O próprio JK, quando em 1957, esteve visitando a cidade se impressionou com as homenagens e a hospitalidade do povo. A “multidão enlouquecida” ao ver o avião aterrisando invadiu a pista, e antes mesmo de JK descer as escadas da nave foi colocado sobre os ombros do povo e carregado como um troféu até a sede da ACL (Associação Comercial de Londrina). Testemunha desse fato, o jornalista Schwartz sintetizou o discurso dele: “Como corolário da tese do desenvolvimento, reputo modelar esta cidade Londrina, em face da pujança econômica e financeira, decorrente dos índices alcançados aqui pela produção” (16).

Esse discurso coroava o ambiente político local nos anos 50/60. A burguesia respirava soberbamente, uma vez que, o peso de um presidente da República, senão o criador da futura capital federal brasileira, representava uma crença legítima do progresso no sertão, neste caso, referindo-se tão somente na produção da monocultura do café londrinense. A par disso, JK, foi surpreendido com algumas mudas de café, como recordação simbólica da cidade para ser lembrada dentro do Congresso Nacional e nos belos jardins do Palácio da Alvorada..

Foram anos de relativa tranqüilidade política. Juscelino colocava em prática seu slogan de governo: “50 em 5”, isto é, cinqüenta anos de progresso em cinco de governo, sustentado pelo programa do “nacionalismo-desenvolvimentista”.Este defendia o processo de desenvolvimento do país a partir dos interesses nacionais. JK declarou: “Convém que se compreenda, de uma vez para sempre, que o desenvolvimento do Brasil não é uma pretensão ambiciosa, um desvario, um delírio expansionista, mas uma necessidade vital. Desenvolver para nós, é sobreviver, gravem bem os que estão em condições de colaborar conosco, que não necessitamos apenas de conselho... mas de cooperação dinâmica, e que essa cooperação é altamente rentável a quem se dispuser a ajudar-nos” ( 17 ).

Londrina entrava assim na cena política nacional, cooperando com o desenvolvimentismo brasileiro de JK, o que confirmava sua vocação para liderar economicamente a região Norte do Paraná. Mas, não demorou muito e já nas décadas de 60 o café começou entrar em declínio, em decorrência da crise nos preços internacionais. Daí, surge mais um problema para a burguesia local, que devia buscar rápida solução, agora sinalizando para uma diversificação na economia como meio de sobrevivência. Não é sem razão que numa entrevista recente o pioneiro da imprensa declarou: “uma cidade se faz com chaminés, imprensa e Universidade”. As indústrias não se tornaram realidade, isto é, elemento principal da produção, sendo que a imprensa seguiu sua função e a Universidade começou a dar um novo destino à cidade.