Contos londrinenses:

Leitura e interpretação da obra Escândalos da Província de Edison Máschio, primeiro romance londrinense que retrata a sociedade na década de 50>>> leia aqui

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Crônica como História - cont. 03

III

Sob a luz desses acontecimentos, “a estranha máquina extraviada”, dava sinais de ter habitado este solo interiorano. Num dia qualquer, mais de meio século atrás, a presença de algo estranho na cidade, aparentemente sem serventia alguma, aos poucos foi se revelando em imagem de culto e reverência. Dependendo da imaginação do leitor sobre o conto; a “máquina” ganhou várias representações: um indivíduo, um hábito, um objeto, um trambolho qualquer, que se tornou símbolo de modernidade, e por conseguinte uma referência desconhecida no cotidiano da comunidade. O não reconhecimento de sua origem, a sua inutilidade, a sua complacência à ordem social, levou o indivíduo ao exercício inconsciente do culto a algo desconhecido. A valorização quase religiosa dessa crença, provocou medo e ao mesmo tempo respeito; sendo que, caso fosse desvendado o segredo da “máquina” corria-se o risco de desencantar toda a tradição e aquilo que sempre habitou o imaginário social poderia cair no ridículo.

Nesse sentido alegórico o conto estabelece uma analogia com as histórias das crônicas londrinenses, sugere uma leitura sobre o significado do “culto ao pioneiro”, promovendo uma reflexão sobre a história da tradição local, de colonização recente. A “máquina extraviada” cria identidades em várias situações, podendo representar: os pioneiros, a off-set, “o pioneiro da imprensa”, a burguesia, ou qualquer outro elemento que, de uma ou outra maneira, invadiram um território estranho e modificaram os costumes locais, rompendo com a tradição e a história.

Em “O Narrador”, Benjamin lembra-nos que: “o cronista é o narrador da história. O historiador é obrigado a explicar de uma ou outra maneira os episódios com que lida, e não pode absolutamente contentar-se em representá-los como modelos da história do mundo”.(18)

Seguindo este pensamento, vemos a experiência deste narrador:

“Da conversa que mantive com o mesmo conclui ser uma pessoa deboa conversa , pouca roupa e sem vintém, mas com vontade devencer, entre os tantos milhares iguais que engrossaramdiariamente” (19)

O cronista menciona um “fait divers”, ocorrido na cidade que, aos poucos vai tomando uma dimensão de marco histórico, talvez digno de se inscrever na história. O fato inesperado de alguém vir de terras distantes e às vezes hostis aos costumes locais, causou um certo espanto, um estranhamento, mas, como caiu na graça do povo passou a ser admirado e reverenciado. A tradição local, que era resistente ao novo, algo, cede aos apelos da coragem daqueles que, de alguma maneira, se encaixavam num perfil de “bravura” e aventura. Explorar novos territórios era desafiar o imprevisto numa aventura arriscada e sem retorno. Daí que, alguns ganharam o status de pioneiro pelo sucesso obtido no desenrolar das aventuras e foram coroados pelo ideal burguês reconhecido pela comunidade local. O discurso do “progresso”, transmitido de geração a geração desde 1930, correspondeu ao desejo da busca pela riqueza, mesmo tendo que importar seus “pioneiros”. Como a lei era o lucro a qualquer custo, os pioneiros não se iludiram apenas com o café, já havia uma ampla visão burguesa preparando o terreno para diversificar a economia em vários setores, inclusive o da “prestação de serviços”.

Nesse sentido, todo indivíduo ao chegar à cidade, logo na entrada se deparava com uma enorme placa tomada pela seguinte mensagem: “VOLTE, IGUAIS A VOCÊ, AQUI, JÁ TEMOS 10 MIL.

Ao perceber aquela placa encomendada na década de 1940, permanecendo ali desatualizada pelo crescimento populacional de 1950, ficava uma sensação inóspita, com a propaganda e o delírio do poeta: “Promete e não recusa a todos os que a procuram – impulso e arrimo rijo – na mira do triunfo” (20). Era um exagero para quem sonhava se enriquecer milagrosamente. Durante alguns anos ela foi interpretada de várias maneiras. Para muitos anônimos, que buscavam uma vida melhor, era difícil acreditar naquele prejulgamento conservador. Era uma ironia para quem, saindo de uma condição desfavorável, muitas vezes, deixando grande prole para trás e atravessando o país nos rastros das incertezas, de repente, ser engolido por um outdoor severo e obscuro. Ninguém na cidade dava informações sobre quem o instalou. O povo jurava que não sabia de nada. O prefeito evitava dar declarações. Muitos paravam em frente desolados e ali refletiam.

Há neste episódio uma contradição em relação ao “progresso”. Nos anos 50/60, Londrina ainda atraía mão-de-obra barata à lavoura do café, mesmo monitorando os que aqui chegavam. Os controladores da cidade tentavam, de uma ou outra maneira dificultar a permanência desses trabalhadores anônimos por alguma razão. Provavelmente, aqueles que só tinham prole a oferecer à cidade não eram tão bem vindos. Outros não se adaptavam facilmente à terra roxa, “livre de saúvas”. O barro vermelho e as crostas de poeira também foram elementos que influenciaram no abandono das famílias da cidade. Como quer que seja, foram anos difíceis ao trabalhador comum, que via nesta terra uma oportunidade de ascensão social, que raramente acontecia. O slogan da propaganda do “ouro-verde”, onde se nadava em dinheiro, só enriquecia os colonos, os estrangeiros e os proprietários das melhores terras. O imobilismo social imperava, uma vez que era característica da sociedade interiorana de todo o país.

O poeta Baudelaire via a idéia de progresso como um “farol obscuro”, o progresso material jamais levou em conta o progresso humano e a felicidade. Como ser feliz no meio do sertão? Como ganhar dinheiro fácil e rápido através do trabalho? Como buscar um lugar ao sol, se ele é de todos? Baudelaire rechaçava essa idéia de progresso que prometia um mundo melhor aos homens:

“Esse farol obscuro, invenção do filosofismo atual, aprovadosem garantia da Natureza ou da Divindade, essa lanternamoderna projeta trevas sobre todos os objetos do conhecimento;a liberdade se esvai, o castigo desaparece.Quem quiser ver com clareza na história deve, antes de maisnada, destruir este farol enganador...” (21)

Essa crítica áspera à idéia de progresso para burguesia, que identificava a riqueza material com o progresso humano, correlacionava, aquela promessa ilusória de que o desenvolvimento tecnológico promoveria também o desenvolvimento social. Esse “farol obscuro”, aliado ao pensamento dominante da burguesia, presente em todos os países capitalistas do mundo, criou mais divisão e distanciamento entre ricos e pobres, principalmente em regiões de colonização recente, como aqui, que se caracterizou como uma extensão do capital inglês.

Londrina não nasceu e cresceu com os braços abertos como os do Cristo Redentor da cidade maravilhosa, uma vez que a burguesia local, exploradora do capital inglês, tratou logo de ocupar todos os espaços, privados e públicos, estabelecendo domínios em todos os aspectos da cidade: social, cultural, econômico e político. O famoso cartão-postal, de pouca cordialidade, demarcando os limites da cidade, símbolo da pura ironia, comunicava a todos os anônimos a intolerância do poder local em relação às práticas e métodos para o enriquecimento. Dava-se o tom da verdadeira acolhida: “esta terra já tem dono”.

Destacando essa idéia de progresso em Londrina, podemos entender que ela esteve fortemente enraizada na busca de se criar um ambiente comemorativo de reconhecimento ao “culto ao pioneiro”. Este, identificado com algum fato histórico relevante ocorrido na cidade. Os anos 50/60 foram ricos em eventos sociais e culturais, transformando o meio urbano num espetáculo da modernidade. Os elementos da modernidade estavam vinculados às demolições de velhas moradias, dando lugar aos novos e imponentes casarões. O moderno também era simbolizado pela introdução de tecnologias de construções verticalizadas. Londrina teve pressa em construir o seu primeiro edifício, na década de 1950. Era um claro desejo de não parar no tempo. Por outro lado, o predomínio do mundo rural começava a desaparecer, surgindo novos problemas de convivência do indivíduo inserido numa coletividade, característico do meio urbano.

Nesse sentido, a importância do “culto ao pioneiro” é de tamanha expressão que, por falta da preservação original de objetos, artefatos, construções e até homens precursores da história local, buscou-se uma classificação de determinados indivíduos “vencedores” , não necessariamente precursores de uma tradição histórica, justificando dessa forma que o pioneiro é aquele que ficou rico porque trabalhou, sobreviveu e construiu a cidade. A par disso, a memória escrita se encarregou do coroamento dessa história de vencedores. A sua preservação foi feita por várias revistas e jornais, comprometidos com a boa e generosa imagem da elite, conservando simplesmente à eternidade o culto das personalidades da societé londrinense. Isto foi confirmado por inúmeras revistas fundadas nesta época. Entre tantas, o lançamento de uma em 1948, com o sugestivo nome: “A PIONEIRA, o retrato do Norte do Paraná” era justificada pelo seu fundador como: “Londrina comporta uma revista de classe”, símbolo do glamour da classe burguesa, essa revista circulou na cidade durante alguns anos, mas como Londrina não lia revistas parou de circular. Seu fundador retornou a São Paulo, sua terra natal, mas deixou aqui o registro de ações burguesas que contribuíram para difundir a idéia de modernidade, respaldada no progresso daqueles que aqui se enriqueceram.




NOTAS BIBLIOGRÁFICAS

1 - ARRIGUCCI Junior, Davi. Enigma e comentário-ensaios sobre literatura e experiência.
São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p. 51.

2 - op.cit p.53.

3 - ZORTEA, Alberto João. Londrina através dos tempos e crônicas da vida. São Paulo.Ed. Juriscredi Ltda, 1975. p. 154-155.

4 - LE GOFF, Jacques. História de memória. São Paulo. Editora da Unicamp, 2003.Pgs. 469-470

O historiador Lê Goff, sintetiza o conceito de memória coletiva no mundo contemporâneo argumentando que: “a memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia. Mas a memória coletiva é não somente uma conquista, é também um instrumento e um objeto de poder. São as sociedades, cuja memória social é, sobretudo, oral ou que estão em vias de constituir uma memória coletiva escrita, aquelas que melhor permitem compreender esta luta pela dominação da recordação e da tradição, esta manifestação da memória.

5 - MARINÓSIO Filho/MARINÓSIO neto. História da Imprensa de Londrina: do baúdo jornalista. Londrina: Ed. UEL, 1991. p. 47

O uso do termo imprensa hegemônica se refere a Folha de Londrina, que desde sua fundação em 1947, já se considerava como um jornal qualitativamente melhor que os outros existentes na cidade. Esse fato é confirmado pelo jornalista Marinósio Trigueiros Neto no estudo que realizou sobre a História da Imprensa de Londrina, revelando sobretudo a luta pela sobrevivência dos principais jornais que apareceram na década de 50/60. Nesta época “eram comuns as rixas e tertúlias” entre os mesmos, merecendo editorial em 14 de Janeiro de 1952:

“Hoje o nosso comentário do dia está reservado de pleno direito ao imbecilizado colunista de um certo jornal local, de há muito conhecido pelas suas antipáticas atitudes. Esse cavalheiro cujo nome por um dever de profilaxia moral nos abstemos de escrever, insiste em fazer jus aos minguados cruzeiros – que nem sempre recebe – fazendo críticas desprovidas de todo e qualquer senso”.

A Folha de Londrina não se envolvia publicamente nessas polêmicas, pois considerava-se acima desse nível jornalístico.

6 - ROLIM. Rivail Carvalho. O Policiamento e a ordem: histórias da polícia em Londrina
1948-1962. Londrina. Ed. Uel, 1999, p. 07

7 - ALONSO, Eduardo. Londrina 60: Crônicas de ontem e hoje.: Londrina. Grafmark,1994. p. 131.

8 - SCHWARTZ, Widson. Poder emergente no sertão: Londrina. Ed. Midiograf, 1997.p. 69.

9 - ZORTÉA, 1975, op. Cit. P. 180 crônica datada de 26/08/1971.

10- VEIGA, José J. A estranha máquina extraviada:contos. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. p. 90-94.

11- ROLIM, op.cit.p48

12- ALONSO, op.cit p.24 – o autor do poema é o poeta Francisco Pereira de AlmeidaJunior.

13- ZORTÉA, op.cit p. 182.

14- LE GOFF. Op cit. Citado da obra de Foucault (1969 p.131) na p.536

15- LEGOFF. Op. Cit. p. 536.

16- SCHWARTZ, op.cit p. 170.

17- FAUSTO. Boris (org) História Geral da Civilização brasileira. 3 ed. Rio de Janeiro,Bertrand Brasil, 1995. t. III, v 4, p 91.

18- BENJAMI, Walter. Magia e Técnica, arte e política: São Paulo: São Paulo. EditoraBrasiliense, 1985 p. 209.

19- ZORTÉA, op.cit. p.182.

20- ALONSO, op. Cit p. 16

21- BAUDELAIRE, Charles. A modernidade de Baudelaire/apresentação de TeixeiraCoelho: Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1988. p. 36.

*Os romances Escândalos da Província e Raposas do Asfalto, do escritor Edison Máschio foram publicados em 1959. Traçam uma imagem verossímel do contexto cultural da sociedade da época. São caracterizados como ficção, narrativas que configuram as relações sociais, valores, costumes e diversos símbolos da modernidade em Pequena Londres.

** Barriga Verde é um apelido dado ao Regimento do Governador da ilha de Santa Catarina de 1739. Este Regimento era composto por soldados artilheiros e fuzileiros que defendeu a ilha catarinense de várias invasões estrangeiras. Recebeu a alcunha, devido ao peitilho verde característico do seu uniforme. Como provas de lealdade, coragem e disciplina, galhardia e honradez se tornou motivo de orgulho do povo catarinense. Ainda hoje, este povo é conhecido por este apelido que tem um sentido de heroísmo.

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