Contos londrinenses:

Leitura e interpretação da obra Escândalos da Província de Edison Máschio, primeiro romance londrinense que retrata a sociedade na década de 50>>> leia aqui

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Crônica como História - cont. 02

II
Ao analisarmos o caráter moderno da história de londrina, levaremos em conta o conjunto dos acontecimentos históricos dos anos 50/60. É sabido que lá se formou uma sociedade heterogênea, a qual muitos pioneiros foram escolhidos a dedo pelos exploradores ingleses, levando à elitização de uma pequena camada de colonos e a proletarização do restante da sociedade. Era a condição para alcançar o sucesso rápido do progresso, garantido pela praticidade do enriquecimento milagroso.

Decorre disso que, qualquer novidade que fosse ao encontro do progresso significava um marco histórico. Com a fundação da imprensa não foi diferente.O nascimento da Empresa Jornalística Folha de Londrina, que impulsionou a comunicação no Norte do Paraná, representou uma nova era da comunicação: a cultura de massa. Mas isso, ao mesmo tempo soava estranho, tendo em vista o fato de que Londrina não registrou no passado uma tradição cultural erudita. Não era nem mesmo possível fazer um contraste entre cultura de massa e cultura erudita. Historicamente aqui predominou somente a cultura agrícola, devido à sua identidade com o ambiente social daquela época. Então pressupõe que o nascimento prematuro do jornal vinculava-se mais ao caráter aventureiro de um investimento de risco qualquer, do que um projeto cultural de um povo com tradição letrada. Seja como for, fundou-se a empresa em 1947 e ela cresceu, resistindo a chuvas e trovoadas, isto é, às crises de conjuntura nacional dos anos 50/60.

O plano nacional dessa época coincidiu com a ascensão do segundo mandato do governo Vargas, que havia claramente optado pelo seu nacionalismo estatal, recorrendo ao capital nacional para promover o desenvolvimento econômico do país. Foi nesse período que Vargas criou a estatal Petrobrás e propôs um reajuste de 100% no salário mínimo, mas não suportou a pressão da oposição de Carlos Lacerda, de militares e do setor empresarial. Sentindo a iminência de um golpe de Estado suicidou-se em 1954.

Neste contexto, a instabilidade política do país e o suicídio de um presidente popular provocou uma expressiva comoção do povo londrinense. A Folha noticiou esse fato, inclusive com fotos de Getúlio em manchete. Vargas era considerado o “pai” dos pobres e o londrinense não tinha dúvidas disso. Embora estivesse comprometido com as elites brasileiras, seu populismo criou raízes e fez carreira aqui e em vários Estados do país.

Não se podia esperar desse cenário histórico algo diferente, senão uma desolação total do povo londrinense, que tinha uma relação afetiva com os políticos nascidos do povo, com o carisma hipnotizante de políticos simpáticos à causa franciscana. Aqui este fato foi sentido e levado a sério, devido à grande presença do “quererismo” varguista – movimento político pedindo o retorno de Vargas à presidência - além de não se conformarem com a perda do “pai”, também entendiam que Vargas simbolizava a “mãe” dos ricos e é sabido que a “mãe” é mais generosa, de qualquer forma ambas classes sociais haviam ficado órfãs de um mito político.

Mas este luto durou poucos anos, até a chegada definitiva de uma corrente política partidária que levou até as últimas conseqüências a arte de governar a cidade junto com o povo. Este é um capítulo a parte da história de Londrina.

Por outro lado, a década de 50/60 ficou conhecida por uma forte crise na lavoura, ligada a falta de trabalho e más condições de vida dos agricultores, gerando um grande êxodo rural. Na verdade foi uma década de crise em todos os aspectos. Aquela que mais ameaçava Londrina era a do transporte ferroviário, o principal ícone da modernidade. Dependia dele o escoamento de toda produção de alimentos. Constatado um boicote da Rede aos empresários locais, acabou faltando locomotivas e vagões e a cidade ficou num “deus-dará”. Além disso colocou em risco aquele projeto de progresso que não podia morrer. A cidade não podia parar por causa da conhecida “guerra dos vagões” ( 8 ) A saída encontrada foi a abertura de duas pontes sobre o Rio Paranapanema, que aliviou o escoamento da produção de cereais.

Outro fator da crise dos anos 50 foi provocado pelo fluxo migratório que se encontrava a todo vapor, gerando grandes problemas à cidade. Era necessário avaliar criteriosamente todos os candidatos, aceitar ou não aqueles que vinham com “boas” ou “más” intenções conhecer o progresso londrinense. Havia uma espécie de olhar que vigiava as ações dos recém-chegados, uma maneira de controle social comum em pequenas cidades do Norte do Paraná. De qualquer maneira todos eram bem vindos, pois ninguém podia ser acusado antes de cometer algum crime. Na verdade não havia impedimentos a um cidadão comum do mundo desembarcar apenas com uma sacola na estação rodoviária, ainda mais, recém-construída pelo famoso arquiteto João Batista Vilanova Artigas, um expoente da arquitetura nacional. Aliás um imponente monumento que se destacava com suas “abóbodas”, viradas no sentido oposto ao centro da cidade. Era algo realmente moderno e grandioso que, de certa forma, tinha uma semelhança metafórica com a cidade. Aquelas formas de arcos inclinados e virados ao encontro do horizonte infinito também simbolizavam que aqui em Londrina o céu era o limite.

Neste clima eufórico de fluxo migratório, temos a notícia da chegada de mais uma personagem que “buscava um lugar ao sol”. Com um olhar clínico e aburguesado noticiava o cronista:

UM BARRIGA** VERDE NO NORTE DO PARANÁ“

Certo dia de 1947 aparecia aqui mais um inconformado com a rotina. Tratava-se do barriga-verde João Milanez.Cansado da pasmaneira e estagnação de sua terra natal, Meleiros (sul catarinense) resolveu tentar a sorte em novas regiões e aqui bateu.Já em Londrina, buscou a Associação Comercial de Londrina e a mim, na qualidade de secretário administrativo daquela entidade.Da conversa que mantive com o mesmo conclui ser uma pessoa de boa conversa, pouca roupa e sem vintém, mas com vontade de vencer, entre os tantos milhares iguais que engrossavam diariamente.

Sem sombra de dúvida, era uma pessoa bem-humorada, disposta a conquistar um lugar ao sol. Nestas plagas norte-paranaenses.
Consultou-me na possibilidade de montar uma oficina de carpintaria e marcenaria – para batentes e portas.
Animei-o de que se tratava ser negócio oportuno e de demanda na praça.
Seria uma boa indústria para a cidade que nascia vertiginosa com suas construções cada vez em maior número.
Interessei-me pelo assunto e pelo novo amigo.Juntos, procuramos vários prédios, para a instalação da novel oficina. Estava tudo visto e bem encaminhado, para a concretização do ideal do barriga verde.
Bem moço ainda, altura média; louro, com ar risonho e desembaraçado, demonstrando energia e dinamismo, de olhar vivo e penetrante. Tipo decidido e irresignado com a rotina, característica do pioneiro.
Como se viu, ficou tudo bem acertado a respeito da instalação da carpintaria.Passados alguns dias, o homem voltava à Associação Comercial.
- Boa tarde, Zórtea
- Vim lhe dizer que mudei de opinião. Em Londrina existem muitas oficinas de batentes e portas. O negócio não é bom. Resolvi coisa diferente: vou botar um jornal. Há falta na cidade. Tenho até nome: FOLHA DE LONDRINA. Vai ser pra quebrar, como diz a gíria. Vai ser sucesso pode contar!
- Escuta aqui Milanez: de oficina de carpintaria para jornal tem uma grande distância!
Você não é jornalista e sim carpinteiro. Como é que vai ser a coisa, então!
- Olha Alberto, sou homem para qualquer coisa, ouviu?- E se pôs em campo.
- Arranjou dois linotipistas, depois de comprar pequena tipografia e seu material.
Tudo na base da compra a prazo.
- Começou a imprimir o seu jornal A Folha de Londrina. O nome era sugestivo e a simpatia do moço proprietário infundia confiança.
A coisa rodou...
- No princípio tudo foi difícil, porém, como o correr dos anos o diário prosperou extraordinariamente, enriquecendo seu dono.
- Fez milagres o senhor Milanez. Conseguiu transformar o jornaleco num grande órgão de divulgação, um dos melhores hoje do Paraná e quiçá o mais aparelhado tecnicamente.
- O jornal circula por todo o Paraná e São Paulo.
- Não devendo o seu feitio aos melhores do país.
- E comercialmente falando, então, fatura uma nota que não tem tamanho!
- Com tudo isso, o Milanez se tornou homem importante econômica e intelectualmente.
- Já entrevistou meio mundo, inclusive o Presidente Kennedy.
- Andou pela América Latina, Europa, Estados Unidos e Canadá.
- Não só provou que é capaz de tocar qualquer coisa como se tornou um dos mais lídimos representantes da boa imprensa nacional.
- A sua estrela brilhou nos céus de Londrina.” ( 9 )

Há um conto, de J.J.Veiga (10), “A Estranha Máquina Extraviada” que de alguma forma tem uma semelhança com esta crônica. O narrador deste conto noticia um acontecimento surgido na província que trata do aparecimento de uma exuberante máquina, deixada na calada da noite por estranhos e rudes homens, em frente a Prefeitura. Ninguém sabia ao certo quem havia encomendado e nem para que ela servia. A máquina passou a ser admirada pelo povo e por uma legião de visitantes que vinham de regiões distantes e ninguém podia tocá-la, instalando-se assim um mistério. A par disso, a máquina passou a operar milagres, mudando os hábitos, as conversas, os interesses da comunidade interiorana. A máquina não tinha nenhuma função, era como um Besouro de ouro, ficava ali, como uma esfinge, cultuada e reverenciada, de modo que toda a vida social da comunidade interiorana gravitacionava em torno dela. A máquina, porém, não podia ser despojada do encantamento que motivava a cidade.

Esta alegoria revela o quanto o progresso e a tecnologia causam estranhamento ao homem comum do sertão, e este fato aconteceu naturalmente em pequenas cidadezinhas interioranas do país afora, pois a chegada da técnica, de novos artefatos e instrumentos começou a perturbar todo o imaginário social local. As pessoas humildes, constituídas por valores arraigados no passado, através dos quais são modeladas suas identidades, acabaram não se comunicando com as novidades trazidas pelo progresso. Daí emergir estas inusitadas relações do homem do sertão com algo novo, com as “máquinas” que invadiram as províncias, sem conhecerem sua função e utilidade, só o fato de estarem presentes na cidade, provocaram mudanças e tensões nas relações sociais da comunidade.

Nesse sentido, há uma semelhança do conto de J.J. Veiga com a crônica, destacada pela conversa entre o cronista e o futuro empreendedor do sertão londrinense. Qual não foi o espanto do cronista ao receber a notícia de um carpinteiro que, em “busca de um lugar ao sol”, decidiu praticamente do “nada”, construir uma empresa vinculada aos serviços de divulgação de idéias de formadores de opiniões. Provavelmente houve um choque cultural entre esta decisão e a comunidade de leitores da época, pois um “carpinteiro barriga verde” (ele não era pé vermelho) transformara-se, da noite para o dia, num empresário das comunicações, senão no “pioneiro da imprensa” de segunda geração. Mas, antes é preciso focalizar nesta narrativa, a sondagem realizada no mercado pelo futuro empreendedor, no qual analisou minuciosamente a vantagem de investir num “formigueiro” bastante explorado. Decidiu não travar concorrência desleal (para ele) com os paulistas e mineiros, conhecidos como habilidosos no ramo, pois dominavam o mercado madeireiro desde a década de 1940. A desistência do ofício de marceneiro e a descrença no negócio de carpintaria abriram-lhe as portas para os meios de comunicação.

Não era estranho o fato de muitos profissionais liberais trafegarem, nos anos 50, de um ramo para outro. Não sabemos, por falta de registro ou mesmo “documentos”, se isso ocorria também na área médica (aí seria um Deus nos acuda). O fato é que a fundação da Universidade de Londrina só foi viabilizada em 1956, e, ainda assim com apenas quatro cursos, graças ao esforço do Professor Zaqueu de Mello, que ao se tornar Deputado Estadual conseguiu aprovar seu projeto junto à Assembléia Legislativa. Nesses anos, os filhos da burguesia sofreram um pouco, pois quem pretendesse cursar uma Universidade precisava se deslocar para as metrópoles brasileiras, decorrendo daí, mutações nas relações familiares. Ao estudar fora da província, esses filhos retornavam à cidade meio rebeldes, com “outras cabeças”, isto é, com comportamentos culturais muito avançados e às vezes estranhos a uma comunidade acostumada ao silêncio da vida.

Apesar dos esforços e do clamor burguês local, o cronista reconhece que, através do “trabalho” era possível vencer as “forças brutas da natureza”. Nesses anos, o que mais identificava um trabalhador era a sua capacidade, disposição e vontade. Se auto-intitulava “homem para qualquer coisa”. Provém disso que muitos prédios e residências foram construídos apenas com a experiência desses homens em noções gerais sobre obras. Mesmo sendo rara a existência de um engenheiro de formação acadêmica, até o momento não temos notícias de desmoronamentos ou implosões de prédios construídos nessa época.

Além do fator “concorrência” não se podia negar o jogo político, como declarou um pioneiro do “tempo das onças”, aliás amigo de Vargas, que “a política é uma bola de cristal e um dado nas mãos”. Era preciso saber jogar, movimentar as peças, acertar nas escolhas. Investir num negócio de carpintaria era como chover no molhado. Todos os trabalhadores do sertão eram experts no ramo, uma vez que, numa região de colonização recente, quem não erguia sua própria casa, dormia no mato. E, nesse tempo, não era raro encontros desagradáveis com felinos selvagens. Daí que, “montar” um jornal era desejo de profundo exibicionismo do progresso, das máquinas, do poder, da cultura e do controle de ideologias. A intenção de “prestar serviços à coletividade”, de fato incomodava a todos. Aliás nos anos 50, quem não prestava algum tipo de serviço era visto como uma “raposa do rabo felpudo” que simbolizava a “picaretagem”, conceito que teve sua época de ouro, uma vez que, este era entendido como uma ação ética quase suportável pelo corpo social.

Esta ética de “prestação de serviços à coletividade” ganhou impulso e notoriedade, haja visto que, nos porões luxuosos das “casas de shows noturnas” era seguida religiosamente. A famosa “Zona Proibida”, que foi cartão de visita da cidade, chegou a ser legalizada por pressão popular, pois além de criar inúmeros postos de serviços era um dos poucos lugares de “lazer saudável”, mas havia quem a reprovasse. Segundo um historiador “pé vermelho”, os jornais davam ênfase ao desembarque nessas terras de uma “avalanche de meretrizes que tomou nossa cidade de assalto e está alastrando por toda a cidade. Nada menos de 6.000 doidivanas, sem nenhum exagero invadiram Londrina( 11 ). Apesar dessa constatação, o poder público fazia vistas grossas, afinal de contas eram “prestadoras de serviços” e nenhum “trabalho digno” devia ser ignorado pelos controladores da cidade. Além disso o comércio do sexo movimentava a economia, gerava impostos e ajudava potencializar o marketing do progresso e do turismo internacional, pois Londrina tinha o privilégio de ser reconhecida mundialmente pela produção de “mercadorias de luxo”. Até a construção, do aeroporto em toque de caixa, o terceiro maior do país em movimento, era condição indispensável à sua sobrevivência econômica.

Este processo histórico é comprovado pelo fato de os proprietários das boates que gozavam de “beneplácito das autoridades”, não raro, eram figuras mais solicitadas nos altares religiosos. Muitos casamentos, denunciava um moralista, contavam com a presença honrosa desses indivíduos como padrinhos de cerimônia, uma vez que, o sonho dessas “meretrizes” era constituir família e conquistar um “lugar ao sol”. Naturalmente muitos filhos legítimos ou ilegítimos dessa época poderiam ter reconhecidas suas duplas cidadanias, um status importante concedido por ocasião de provas de hereditariedade consangüínea, determinando assim, com mais celeridade as árvores genealógicas dessa gente. Destacaríamos as duplas cidadanias com mais candência, a inglesa, a espanhola, a italiana, a libanesa, a alemã, a japonesa, a portuguesa, a africana, a paraguaia, a sueca, a indiana etc. É daí que nasce a nossa miscigenação e aculturação , comprovada num poema em homenagem a Londrina:

“Londrina, cidade de braços abertosa todos os filhos do nosso Brasile a todos aqueles de Pátrias distantesque aqui confiantes,sob um pálio anil,seu lar construírame aos filhos se uniram,de nosso Brasil” ( 12 )

A existência dessa complexa mistura, dessa miscigenação cultural dá a Londrina uma certa identidade, mas cabe aos pioneiros de primeira e segunda gerações e a multiplicidade de nações estrangeiras explicar a verdadeira origem dessa gente, que de alguma maneira sofreu, desde os tempos dos destemidos bandeirantes, uma profunda crise de identidade.

Criou-se, assim, um clima cosmopolita, graças a este cruzamento inter-racial e a adaptação e boa convivência entre essa diversidade cultural. Viabilizou-se uma sociedade aparentemente pacífica. Desse “caldeamento” de cultura, Londrina se beneficiou do empenho no trabalho desses povos “invasores”, quase todos vocacionados naturalmente à “prestação de serviço”. A idéia de ser “homens e mulheres para qualquer coisa”, apenas consolidou um desejo comum à todos: receber a graça de um milagre – o dinheiro. A maioria dos indivíduos de várias procedências, pouca instrução, fincou aqui suas raízes e sonhos, mas apenas uma minoria viu o futuro glorioso chegar, isto é: “o sorriso do dinheiro”.

O “pioneiro da imprensa” foi uma dessas exceções exímio “prestador de serviço”, como declarou o cronista: “Ele fez milagres”, não o recebeu. Em época de crise era consenso local recorrer aos fenômenos sobrenaturais, daí que, Londrina também desenvolveu uma forte vocação à fé religiosa, uma vez que a quantidade impressionante de igrejas sinalizava já uma preocupação dos fiéis com o destino de suas atitudes em busca do juízo final. Claro está que, ao longo do tempo veio se multiplicando em ritmo irrefreado um número incalculável de franquias e extensões de denominações religiosas nunca vistas pela tradição conservadora da cidade.

Além de sua vocação espiritual, os controladores locais, mantinham um procedimento bastante usual de “batizar” os futuros empreendedores. O “pioneiro da imprensa” não escapou dessa prática, era ritual válido, analisar as aparências, as características pessoais e fisionômicas do “pioneiro ideal”, que seguia um modelo padrão, declarava o cronista: “Bem moço ainda, altura média; louro, com ar risonho e desembaraçado, demonstrando energia e dinamismo, de olhar vivo e penetrante. Tipo decidido e irresignado com a rotina, característica do pioneiro” ( 13 ). Essa característica do pioneiro londrinense vinculava-se ao modelo europeu do homem viril. De certa maneira, houve uma injustiça irreparável com a cultura afro-brasileira local, da qual Londrina tem uma dívida impagável, por não mencionar historicamente a contribuição expressiva dessa gente, que também produziu representantes que imprimiram seu modo de sobreviver diante do sucesso e progresso da cidade. Há ainda carência de estudos históricos da cultura negra, dos pioneiros negros, que por alguma razão foram apagados ou mesmo “esquecidos” nos arquivos e registros do “culto ao pioneiro.”

Nesse contexto, compreende-se que o caráter do pioneiro, escolhido a dedo pelos ingleses nos primórdios da colonização, evoluiu-se para um critério subjetivo de análise da performance do indivíduo. Além disso era indispensável aptidão ao trabalho e capacidade de inovar. Portanto, foi a burguesia local que determinou o modelo ideal, o tipo do homem que devia herdar esse título, tradição conservada que, após mais de meio século, ainda se cumpre a cerimônia política de conceder títulos de “cidadãos honorários” aos “grandes prestadores de serviços à sociedade”. Falta à memória coletiva local, um monumento homenageando os verdadeiros “peões do café”, lembrando os trabalhadores comuns. Estes ao morrerem levaram consigo toda uma história não preservada, merecendo ser resgatadas do fundo dos túmulos mais antigos da cidade. A riqueza deixada por esses trabalhadores, decorrente da conquista do progresso material também pertence às gerações seguintes, legítimas herdeiras de uma memória, cuja tradição sempre vinculou à esperança de um progresso social.

Essa tradição de preservar a memória é crucial. Foucault declara que os problemas da história podem se resumir numa só palavra “o questionar do documento”. E logo recorda: “o documento não é o feliz instrumento de uma história que seja, em si própria e com pleno direito, a memória: a história é uma certa maneira de uma sociedade dar estatuto e elaboração de uma massa documental de que se não separa” ( 14 ). No entanto a crônica como um tipo de documento, um registro do passado, é uma representação da história local da época em que foi produzida, servindo como conservação de um passado, memória individual que busca fazer síntese dos acontecimentos históricos. Todavia a memória, “na qual cresce a história, que por sua vez alimenta, procura salvar o passado para servir ao presente e ao futuro. Devemos trabalhar de forma que a memória coletiva sirva para a libertação e não para a servidão dos homens”( 15 ).

Nesse sentido, ao reconstituirmos o vivido do passado no presente, notamos que o personagem “pioneiro da imprensa” é uma síntese de um conjunto de indivíduos que, pela sua identidade revelada pelo cronista, vinculava-se a um ideal burguês, elaborado por uma tradição cultural, guardiã e dominadora da memória coletiva. Daí esse modelo ser referência de um padrão determinado por uma elite local. Não é sem razão que lhe foi conferido o status de “pioneiro da imprensa”, o que possibilitou a preservação da memória escrita, cuja função é o de resguardar uma história construída por vencedores.Resultado disso é o fato de que na luta de classes, permanece a memória dos acontecimentos manipulados pela elite para legitimar o poder e o domínio da burguesia, enquanto precursora do progresso social.

Quando a “estrela do pioneiro da imprensa brilhou nos céus de Londrina” aqui já havia se consolidado o projeto burguês de cultura, a memória dos desbravadores, o discurso sobre o social, e os elementos que, de alguma maneira, correspondiam ao marketing da cidade do café. Nessa época, Londrina se destacou ao ponto ser passagem obrigatória dos candidatos à presidência da República. O próprio JK, quando em 1957, esteve visitando a cidade se impressionou com as homenagens e a hospitalidade do povo. A “multidão enlouquecida” ao ver o avião aterrisando invadiu a pista, e antes mesmo de JK descer as escadas da nave foi colocado sobre os ombros do povo e carregado como um troféu até a sede da ACL (Associação Comercial de Londrina). Testemunha desse fato, o jornalista Schwartz sintetizou o discurso dele: “Como corolário da tese do desenvolvimento, reputo modelar esta cidade Londrina, em face da pujança econômica e financeira, decorrente dos índices alcançados aqui pela produção” (16).

Esse discurso coroava o ambiente político local nos anos 50/60. A burguesia respirava soberbamente, uma vez que, o peso de um presidente da República, senão o criador da futura capital federal brasileira, representava uma crença legítima do progresso no sertão, neste caso, referindo-se tão somente na produção da monocultura do café londrinense. A par disso, JK, foi surpreendido com algumas mudas de café, como recordação simbólica da cidade para ser lembrada dentro do Congresso Nacional e nos belos jardins do Palácio da Alvorada..

Foram anos de relativa tranqüilidade política. Juscelino colocava em prática seu slogan de governo: “50 em 5”, isto é, cinqüenta anos de progresso em cinco de governo, sustentado pelo programa do “nacionalismo-desenvolvimentista”.Este defendia o processo de desenvolvimento do país a partir dos interesses nacionais. JK declarou: “Convém que se compreenda, de uma vez para sempre, que o desenvolvimento do Brasil não é uma pretensão ambiciosa, um desvario, um delírio expansionista, mas uma necessidade vital. Desenvolver para nós, é sobreviver, gravem bem os que estão em condições de colaborar conosco, que não necessitamos apenas de conselho... mas de cooperação dinâmica, e que essa cooperação é altamente rentável a quem se dispuser a ajudar-nos” ( 17 ).

Londrina entrava assim na cena política nacional, cooperando com o desenvolvimentismo brasileiro de JK, o que confirmava sua vocação para liderar economicamente a região Norte do Paraná. Mas, não demorou muito e já nas décadas de 60 o café começou entrar em declínio, em decorrência da crise nos preços internacionais. Daí, surge mais um problema para a burguesia local, que devia buscar rápida solução, agora sinalizando para uma diversificação na economia como meio de sobrevivência. Não é sem razão que numa entrevista recente o pioneiro da imprensa declarou: “uma cidade se faz com chaminés, imprensa e Universidade”. As indústrias não se tornaram realidade, isto é, elemento principal da produção, sendo que a imprensa seguiu sua função e a Universidade começou a dar um novo destino à cidade.

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