Contos londrinenses:

Leitura e interpretação da obra Escândalos da Província de Edison Máschio, primeiro romance londrinense que retrata a sociedade na década de 50>>> leia aqui

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

A TRAMA DAS AÇÕES DAS PERSONAGENS

A RECONSTRUÇÃO LITERÁRIA DE PEQUENA LONDRES
Edison Máschio e os Escândalos da Província


A TRAMA DAS AÇÕES DAS PERSONAGENS


No romance Escândalos da Província, Sinfrônio Arrabal é o prefeito de Pequena Londres. É a personagem central, que comanda todas as ações das quais a cidade necessita para se desenvolver. Tudo gravita em torno dele, de modo que, as personagens secundárias dependem fielmente do que ele, presumidamente, pensa sobre a justiça, a moral, a religião, a riqueza, enfim, os temas que cercam a vida em uma cidade de porte pequeno do início do Século XX. Sinfrônio tem um irmão, concebido fora do casamento, fruto de um relacionamento do pai com uma prostituta. Esse fato revela que a personagem tem um passado nebuloso, que tenta escondê-lo de seus amigos e da própria população para não arranhar sua imagem de figura moralista.

Na cidade ninguém se importa com a vida particular dele, uma vez que, a preservação de sua aparência conta mais do que seu passado. Assim, ele se apresenta como personagem transparente e puro, longe dos escândalos no seio social. A sua moral ,em relação ao cargo que ocupa, torna-se elemento essencial da trama, pois Sinfrônio, para manter sua postura social e política, precisa esconder os fatos imorais da sociedade. Mas, aos poucos, o narrador vai revelando que esta personagem é o próprio símbolo da imoralidade de Pequena Londres. Suas atitudes e ambições fornecem munição para atacar todas as ações praticadas pelos aproveitadores e aventureiros da cidade.

A personagem Walkiria Sardanapalo é noiva de Sinfrônio. Leva uma vida cheia de contradições. Suas intenções com o noivo são duvidosas, uma vez que não sente amor por ele, mas não quer perder a esperança de herdar uma grande fortuna. Inconstante e de caráter cruel, humilha o noivo, exercendo um relativo poder sobre ele, o qual se entrega à paixão cega, louca e irônica. A relação dos noivos é pontilhada por laços de dependência sexual, uma vez que, Walkíria só pensa no dinheiro e no status social e Sinfrônio só pensa no objeto sexual e na satisfação do prazer momentâneo. Sinfrônio revela sua fraqueza de homem apaixonado e dominado pela noiva. Consente nesse domínio, pois não é totalmente fiel à paixão, freqüentemente vai às “boates”, “adora” mulheres alegres, aí adquire fama de mulherengo.

Esse imperfeito relacionamento amoroso passa a ser referência moral para os demais habitantes de Pequena Londres e, sobre ele, as relações dos indivíduos são moldadas, de modo que nenhuma personagem foge desse padrão de moralidade praticado nas instituições da cidade.

Sinfrônio é símbolo do “trabalho”. Chegou ao cargo mais alto da cidade, porque lutou e com o esforço do seu trabalho foi reconhecido como homem merecedor do cargo. De tradição familiar fincada na pobreza cultural e material, esconde da sociedade seu pai, pois tem vergonha de sua aparência humilde; o aprisiona dentro de casa, procura manter o irmão longe da cidade, embora as pessoas não terem interesse em questionar o passado, pois este podia condená-las. É fundamental, para o narrador, mostrar as ações vinculadas ao presente, como se as personagens vivessem somente a fase adulta, pois todos os que vivem na cidade vieram de algum canto do país, aventurar, buscar trabalho, oportunidade de enriquecimento, todos, com os mesmos objetivos, querem construir uma nova vida, uma vez que as dificuldades eram imensas.

Um telefonema surpreende Sinfrônio com uma má notícia. Era a morte do pai, adoecido havia alguns meses. Afastado, havia tempo, daquela comunidade religiosa, ele resolve ir à igreja. Sua consciência estalou de arrependimento, não podia deixar de “encomendar” uma missa à alma do progenitor. Walkíria zomba dessa atitude, argumentando que ele nunca deu a devida atenção ao pai, porque era pobre, analfabeto e desconhecido de Pequena Londres, também, pouco se importava pela vida espiritual. O fato é que Walkíria acha “ironia” Sinfrônio ir à igreja somente nessa ocasião, pois era melhor, antes, livrar a comunidade daquele vulcão de imoralidade que afetava todos o seres da cidade.

Segundo o narrador, as personagens estavam todas comprometidas até o pescoço com pecados e ações pouco cristãs. “Não havia ninguém que pudesse atirar a primeira pedra”. Os pecados eram de todas as cores, de toda ordem, que faziam das personagens figuras sem remorsos, insensíveis ao arrependimento. Walkíria, personagem de pouca fé, dava testemunho de sua experiência, marcada por irreverência, desfaçatez da sensualidade feminina. Ela valorizava com “interessante ironia” o cinismo no relacionamento com o noivo, era uma estratégia para impor seu poder de adestramento sobre o noivo. Ele confessava sem escrúpulo sua dependência sexual, suas fantasias e desejos incomuns, e, por essa razão, permitia liberdade incondicional para Walkíria sentir-se satisfeita com a vida da melhor maneira possível.

Na igreja, local sagrado, Sinfrônio não escapa da necessidade de fazer uma profunda reflexão sobre sua vida, e é surpreendido por uma enxurrada de lembranças comprometedoras, das quais, luta constantemente para se libertar e interromper aquilo que vem na sua consciência involuntariamente. Ele está numa profunda mudez, ajoelhado e a lembrança do passado obscuro rouba-lhe aquele momento de paz e o obriga a um exame de consciência. Aguarda em silêncio o atendimento do padre Herman para sua confissão e posterior absolvição de seus pecados, que originavam sua freqüente crise existencial.

Contempla as lindas vidraças das janelas, doadas por fiéis. Mas, chamou-lhe a atenção uma em destaque vermelho, doada por um conhecido corretor da cidade, comprometido com corrupção e preso por estelionato. “Surpreso” com a “ousadia” da ação dos “pecadores” de Pequena Londres, Sinfrônio sente necessidade novamente de refletir, mas é censurado pela própria consciência. Convém não refletir, mas compreender a “realidade” histórica. Julgar a moral alheia dos “semelhantes” era como censurar a si mesmo. Melhor não questionar as boas intenções daqueles que ainda tinham esperança de se converterem em bons fiéis.

O padre Herman, segundo o narrador, se destacava por ser um autêntico liberal, aberto ao diálogo, formado por sólida e inquestionável experiência religiosa. Um modelo de pastor identificado com as “exigências da vida moderna”. Compreendia bem o ambiente de tristeza que dominava os fiéis. Solidário aos conflitos pessoais, sonhos assustadores e deslizes daqueles que procuravam se livrar dos “delírios demasiadamente humanos”. Um perfeito conselheiro das “almas pecadoras”, que recorriam a ele, mais por temor de sofrer um julgamento de aparências das personagens, do que por confessar arrependimentos de ações pouco lúcidas. Tratava os ricos e os pobres sem discriminação, sem relevância de pecados cometidos.

Dentro da igreja Sinfrônio se esforçava para rezar, ele sabia rezar! Como líder político, queria saber do padre o comportamento social e moral dos fiéis, observava o movimento na igreja, tecendo leves críticas às doações de vitrais para justificar comportamentos socialmente duvidosos. O personagem tem consciência de que está lidando com uma autoridade religiosa, que também é líder de uma complexa comunidade, cujas raízes se encontram esparramadas pela cidade sem um forte elo de identidade. Padre Herman tem a missão de unir essa identidade, dividida entre o mundo urbano e o rural. O próprio Sinfrônio é fruto dessa falta de raízes históricas, que permeavam toda a cidade nos anos 50 em Pequena Londres.

Em visita cordial, o personagem caminha da igreja ao cartório. Ali encontra o amigo notário Arconço Escuculha, um antigo conselheiro de confiança, reconhecido, segundo o narrador, como um “imperturbável moralista da província”. Encontrava nele a liberdade de confessar suas inquietações em relação à imoralidade da sociedade de Pequena Londres. Não convinha, na época, ter como inimigo as instituições policiais e o clero. Era melhor fazer a política da boa vizinhança com as autoridades, pois ninguém, sozinho, conseguiria restabelecer a ordem moral numa cidade que nasceu sem vínculos tradicionais sólidos. Necessitava de um esforço coletivo e dantesco, pois a agitada Pequena Londres não conheceu linguagem diferente, senão a da corrupção em todos os aspectos.

A personagem Arconço tem forte personalidade. Homem de decisão, foi um vencedor tanto na vida pública como na privada. Tinha conhecimento superficial de arte, filosofia, ética, política e psicologia social. Mas era personagem enigmática, inteligente e sobretudo moralista, caracterizado como o mais refinado avaliador de costumes em Pequena Londres. Por essa razão era tão requisitado por outras autoridades da cidade, que viam nele uma figura invejável, um modelo raro de personagem que lutava para manter as aparências. Tinha um defeito, era demasiadamente exibicionista, obsessivo por estranhas aventuras.

Seu cartório era um “formigueiro” de gente, ali se realizava de tudo: escrituras de terrenos, casamentos, juiz de paz, conselhos espirituais; era uma referência aparentemente segura. Interessante fato era que Arconço colecionava obras de arte. Nas paredes de seu cartório os fregueses podiam admirar quadros raríssimos, de estilo impressionista, como um Manet. Ele tinha a convicção de que suas pinturas eram originais. Claro está que como conhecedor de arte jamais poderia ser enganado por “espertalhões do pincel”. Na verdade suas obras eram reproduções baratas, mas adquiridas de boa fé. Original mesmo era seu retrato que tomava toda a parede atrás de sua mesa de trabalho. Nessa obra-prima ele aparecia sorridente de “sunga” sobre um indefeso elefante, “fugido de um circo” no Mato Grosso, revelando coragem e habilidade no adestramento de animais. Os fregueses achavam aquilo natural, pois estava acostumados contemplarem em Pequena Londres imagens ainda mais fortes e eloqüentes de estranhas aventuras dos homens do sertão.

Arconço possui um confessionário no cartório e Sinfrônio confessa que quer se casar. A cidade deveria ganhar uma primeira dama? Talvez. O fato foi analisado racionalmente, pois não convinha se precipitar diante de personagens com pouca lucidez. O progresso social de Pequena Londres transformava rapidamente o comportamento coletivo da cidade. As moças casamenteiras progrediram de modo irreconhecível, seguindo os rastros da evolução dos costumes daquele tempo. O narrador sugere paciência, uma minuciosa análise do momento atual. Arconço já havia dito há dez anos atrás que desaprovava o casamento de Sinfrônio por imaturidade do contraente, mas hoje mudou de idéia, concorda, sem restrição. Pois, há dez anos atrás Sinfrônio era pobre, analfabeto, um “zé ninguém”. Atualmente é prefeito, muito rico, com projeção política muito sólida. Administrador de uma cidade, apesar de provinciana, rica e próspera, abençoada pela terra roxa que produzia de tudo, atraindo gente de todo canto do Brasil afora, inclusive profissionais de diversas áreas.

Tiburcio Lastragol é um desses profissionais. Jornalista, atraído pela esperança de fazer fortuna, configurava a personagem mais cômica do enredo, segundo o narrador. Com cento e vinte quilos, recentemente chegado do Rio de Janeiro, veio tentar a sorte no sertão com o objetivo de montar um jornal e faturar muito dinheiro, procurava sutilmente um “lugar ao sol”. Cabe ressaltar que conhecia bem o ramo, mas não possuía capital, fato que o levou a se aventurar no campo da chantagem emocional, lançando-se como “conquistador” de moças insatisfeitas com maridos e noivos.

Apesar de gordo e muito feio, tinha a vantagem da “malandragem carioca”. Era bom prosador, de fácil lábia, enganador envolvente e especialista em chantagem amorosa. Esquentava relacionamentos amorosos desgastados pelo tempo e freqüentava constantemente o famoso Clube de Campo, onde se reunia a “fina flor da sociedade de Pequena Londres”. Ali conheceu Walkíria, que passava com freqüência por fases difíceis na relação com Sinfrônio. Logo, no primeiro encontro, se identificaram, desabafaram suas inquietações e confessaram segredos íntimos, como se conhecessem há anos. De cara, houve atração à primeira vista. Ele, sem dinheiro, buscava uma única oportunidade de se redimir da pobreza. Ela, infeliz, procurava “alguém” para preencher um profundo vazio em sua vida. Selaram um acordo de reciprocidade. Mas, Tiburcio buscava tão somente dinheiro, visando explorá-la pelas vias do prazer. A idéia era usar Walkiria como isca para angariar “fundos” junto ao prefeito, seu noivo.

Sinfrônio se empolgava com o surgimento de novos empreendimentos na cidade. De pronto, viabilizou o desejo de Tiburcio, emprestando-lhe um barracão abandonado e a promessa de alguma verba extra para dar início às atividades da empresa. O prefeito não tinha conhecimento e nem suspeitava da formação de um triângulo amoroso, do qual era apenas coadjuvante inconsciente. Já Tiburcio, como carioca malandro, exigia cada vez mais de Walkiria. Desejava um empréstimo impagável e ela, movida por uma chama ardente de desejo, não pode negá-lo, e, prontamente, providenciou quase um milhão de cruzeiros, quantia realmente alta. Tiburcio calculava minuciosamente o desenrolar dos fatos, atingindo seus objetivos, sem levantar suspeita na cidade. Imprimia em Pequena Londres um novo método: a chantagem – para participar na divisão do acúmulo de riqueza gerada pela rubiácea.

O projeto mais importante de Sinfrônio era seu casamento com Walkiria, fato que constantemente era adiado em decorrência dos sucessivos escândalos que pipocavam quase todos os dias na cidade. Pequena Londres passava por momentos delicados, à sua volta a corrupção impregnava todos os seguimentos sociais. Era impossível administrá-la com coerência. Como líder político, era necessário revelar transparência dos gastos públicos, convencer a população de que o progresso dependia do ritmo de trabalho e a cidade não podia ficar truncada por conta de escândalos históricos.

Um fato veio à tona na cidade, conhecido como o “escândalo do ano”. Tratava-se de um crime bárbaro, cometido por um Juiz de Direito. Crime dessa natureza não era comum em Pequena Londres. O Juiz assassinou com dois tiros na cabeça um ilustre advogado, motivado por um ódio monstruoso e por uma rara inveja intelectual. O juiz o tinha como desafeto no meio jurídico, não suportou tamanha humilhação profissional, uma vez que, o advogado vinha obtendo inúmeras vitórias em sentenças, quando eram reformadas pelo Tribunal de Justiça.

Esse negro episódio balançou as instituições conservadoras de Pequena Londres. Ninguém imaginava que a cidade, abalada por tantos escândalos de corrupção, pudesse ser surpreendida por um ato tão selvagem, de pura cegueira profissional. Despertou na sociedade um clamor de justiça, um sentimento de angústia, medo, enfim, de estranhamento em relação àqueles que tinham a função de defender a cidade. As personagens comentavam que a sociedade vivia num clima de “faroeste” e nada justificava um ato que manchava de sangue capítulos da estória da cidade A justiça estava corrompida pelo “triste espetáculo de uma burguesia decadente”. Sinfrônio foi quem mais sofreu com o crime, pois poderia até perder um novo mandato político, por não justificar os índices alarmantes de violência e crimes em Pequena Londres.

A repercussão desse crime tomou uma dimensão incontrolável. Foi noticiado pelos meios de comunicação em rede nacional e Pequena Londres ficou famosa nas manchetes dos jornais sensacionalistas de todo o Estado. Para atenuar a situação de temor e o abalo social, foi designado para substituir o juiz criminoso a personagem Dr: Leon Arrochelas. Ao desembarcar no aeroporto, o juiz substituto pressentiu um clima de profunda hostilidade à justiça institucional. Logo foi recebido numa tensa audiência com o prefeito. Conversaram abundantemente sobre a delicada situação de descrença da sociedade na justiça local. O novo juiz assumiu o compromisso com o prefeito de reerguer o moral e o prestígio da justiça em Pequena Londres.

Do encontro formal, a impressão que mais marcou Sinfrônio foi os gestos afeminados da nova personagem, concluindo, sem nenhuma dúvida que: Dr: Leon Arrochelas era um autêntico “pederasta de fidalga linhagem”. Não convinha ao prefeito julgar com preconceito a natureza homossexual do juiz, mas havia o receio de que o estranho comportamento de uma figura de largo poder pudesse influenciar naturalmente os costumes já corrompidos da virtuosa sociedade. A questão era: será o novo juiz um modelo implacável de prostituição dos costumes de uma cidade dividida entre o trabalho e a luxúria? De certo modo, não. Sinfrônio até simpatizou-se com a nova personagem, queria tê-la como aliada para vencer a terrível invasão de corruptos na cidade, também, para ajudar o prefeito a superar um difícil momento, o crime do advogado, tomado por revolta popular, inesquecível na memória do povo.

O juiz Dr: Leon, se estabeleceu com plenos poderes, revelando pulso forte para conduzir a cidade no caminho da civilização. Era necessário para ele demonstrar à população, lisura e celeridade em suas sentenças judiciais. Revelar que a justiça tarda, mas não falha, e para isso, devia ter sólidos argumentos, baseados em fatos e práticas de convencimento à sociedade. Era fundamental mostrar que a justiça, sem sombras de dúvida, se constitui numa instituição incorruptível, na busca da decisão jurídica para o bem da comunidade.

Leon Arrochelas surpreendeu a todos. Não suportou a tradição da sociedade baseada nas falsas aparências. Logo, também apareceu desfilando no footing da Avenida Paraná a tira colo, com seu jovem amante Dr: Adelardo Nobre. A quem caberia julgar esse fato? Todos ali torciam o nariz, mas não tecia comentário da vida alheia, principalmente de uma figura tão poderosa, aquele que devia preservar pelo bom costume da sociedade. Era pederasta, mas não criminoso, e isto era suportado pela sociedade. Dr: Leon buscava através do cargo se legitimar perante a população. Seu vínculo com o namorado não devia desabonar seu trabalho, que exigia transparência moral e confiança nos processos por ele analisados.

O jovem advogado Adelardo, aceitava a condição de amante da figura mais poderosa da província, mas exigia recompensa. O romance entre ambos era marcado por tensões. Dr. Adelardo exigia trabalho digno, ganho de causas, informações privilegiadas, enfim tráfico de influência, para se estabelecer como profissional competente. E, Dr. Leon devia dar sentenças favoráveis ao amante, a fim dele ganhar a cada dia mais notoriedade junto daqueles que viviam com pendências na justiça. Segundo o narrador, essa relação de interesse era despistada pelo juiz, cauteloso, tinha capacidade de controlar o desenrolar dos fatos de modo racional, para não expor a justiça novamente ao ridículo.

Sinfrônio não interferia nesse romance homossexual, aliás não tinha nada contra a opção sexual do juiz, desde que mantivesse a ordem e a esperança do povo pela justiça local. Estava mais preocupado com a realização de um antigo projeto de felicidade: o casamento com Walkiria. Entendia que se tornara um homem bem resolvido e preparado para o desafio de unir-se, por laços de amor, a uma jovem que tanto desejava.
Pequena Londres ganhou um feriado municipal para acompanhar o evento mais importante do ano. O prefeito estava se casando no civil e no religioso, era um orgulho para o povo e ao mesmo tempo um exemplo moral para a cidade. Realizou-se uma festa de arromba, inesquecível, recebendo ao enlace a mais fina “nata” da sociedade, que brindava com cristais importados aquele marco histórico. A cidade foi tomada por um sentimento de felicidade geral, que momentaneamente dava uma trégua nos sucessivos escândalos que movimentaram as relações sociais.

Em lua-de-mel, Sinfrônio tem sua primeira decepção: lhe é negado um herdeiro. Walkíria não pensa engravidar, quer manter por longo tempo aquele “corpinho” e a jovialidade. Em noite de núpcias oferece a Sinfrônio um pacote de camisinhas, numa atitude consciente de evitar a qualquer custo uma gravidez que não deseja. Ainda argumenta que um filho, poderia lhe impedir de certo modo continuar a gozar a vida com mais liberdade. Só resta a Sinfrônio o lamento pela decisão da mulher, mas não pensa contrariá-la.

Era natural que Sinfrônio expusesse a situação ao seu conselheiro, amigo Arconço. Sua vida começou a desmoronar emocionalmente. No Clube de Campo o amigo revelou a profunda infelicidade que Sinfrônio vinha sentindo, com a possibilidade da falta de um herdeiro. Walkíria era uma mulher moderna para os padrões da cidade. Tinha opiniões próprias, suas decisões geralmente eram definitivas. Um mês de lua-de-mel na capital cearense e já sentiam saudades de Pequena Londres, o calor humano da “aldeia”. Sinfrônio também estava preocupado com o trabalho, com o governo da cidade; ela não podia ficar tanto tempo sem um representante fiel, administrador de escândalos.

Na ausência de Sinfrônio, quando em lua-de-mel, o notário Arconço se ofereceu para assumir o controle dos sucessivos escândalos que não davam trégua em Pequena Londres. Como reconhecida autoridade, organizou um forte movimento para recuperar o “padrão moral do povo”. Sentiu-se capaz de pôr ordem e resgatar valores cristãos da sociedade. Como quase todas as tramas eram armadas no Clube de Campo, convidou para uma reunião extraordinária todas as correntes sociais mais preocupadas com o destino da cidade. O objetivo da reunião era decidir sobre duas questões imorais: reduzir o elevado índice de prostituição e acabar com os abortos ilegais. Todos presentes aprovaram as idéias de Arconço, que devia começar atacando esses problemas pela imprensa (marron), o Saturno, de Tiburcio Lastragol.

Arconço consultou formalmente Sinfrônio da necessidade de eliminar, de uma vez por todas, essas duas práticas, consideradas imorais pelo coletivo social. De imediato, Sinfrônio não deu o esperado apoio ao notário, pois era crucial analisar as conseqüências políticas dessa campanha. Naturalmente poderia lhe causar uma imagem negativa e de irreversível impopularidade. No calor da discussão, entre as autoridades de Pequena Londres, Dr: Leon viu uma oportunidade de se vingar das prostitutas, que lhe incomodavam em vários sentidos; não suportava as “doidivanas”, desfilando tranqüilamente pela cidade impunemente. Segundo o narrador foi o juiz o autor de uma autorização judicial ao delegado de polícia para humilhar as prostitutas da cidade: “Escoltadas por soldados, cinco prostitutas desfilaram pelas ruas centrais, levando no ombro um cartaz humilhante: somos prostitutas, vergonha da cidade”.
Aquilo soou mal, chocou e produziu um impacto estranho à sociedade que agora via a prostituição como raiz dos atos imorais praticados pelos cidadãos. Não convinha ao prefeito apoiar uma decisão de tamanha repercussão, ele assistiu como expectador indignado o desfile mais histórico da cidade. Entretanto o juiz continuava disposto a perseguir as prostitutas, repreendendo-as ferozmente, como principal inimigo dos bons costumes da sociedade. Por ordem do delegado as prostitutas também foram obrigadas a ficar carecas, impressionando ainda mais a população.

Todos os jornais locais noticiaram o fato, que foi considerado chocante. Muitos que por ali passaram, reconheceram nas “doidivanas” carecas momentos de prazer, provocando assim, um sentimento ambíguo, de cumplicidade à boa moral coletiva. Sinfrônio decididamente não gostou nada dessa atitude unilateral do juiz que, de certo modo, apimentava as relações sociais na cidade. Ele próprio não podia esconder seus pecados com o jovem advogado, estava totalmente comprometido com práticas imorais que manchava a imagem da cidade. Sinfrônio argumentava em defesa das “doidivanas”, pois prestavam serviços à sociedade, e guardavam segredos picantes e úteis da alta sociedade, sempre mantendo discrição. Por essa razão não se devia “cutucar a onça com vara curta”, para não ser surpreendido.

Na verdade, o prefeito exercia seu poder diplomaticamente, uma vez que não cabia a ele julgar as meretrizes. Ele sempre atuava como um verdadeiro “messias” que socorria as vítimas indefesas. Observando aquela situação cômica de escândalos na sociedade, Arconço se convenceu de que sua luta não estava surtindo o efeito esperado e desiste do gigantesco desafio. A atitude significou um “tiro no pé” dos moralistas de Pequena Londres. Houve uma reflexão geral, mas a sociedade não absorveu o fato como uma iniciativa de exterminar as práticas imorais da cidade. Pouco tempo depois, as meretrizes se viram livres para fazer o “trottoir” pelas ruas, com relativa tranqüilidade.

Esse acontecimento arruinou ainda mais o debilitado estado de saúde de Arconço. Ele se encontrava bastante triste diante da impossibilidade de dar fim às prostitutas carecas. Não sabia, ainda, que havia contraído um câncer maligno no estômago, restando-lhe só três meses de vida. Desenganado pelos médicos, sentiu todo seu esforço findar em vão. Já no leito de morte, confessou a Sinfrônio que desejava escrever um livro de memória, onde narraria toda a carreira agitada de notário da província. Sinfrônio achava uma idéia interessante, mas perigosa, pois suas memórias podiam revelar recordações e histórias pouco conhecidas em Pequena Londres. Não seria viável um homem que testemunhou várias décadas do progresso da cidade falar despreocupadamente sobre tudo que viveu e presenciou. Sensibilizada com o estado terminal de Arconço, a primeira dama Walkiria, sugeriu oportunamente a construção de uma estátua em praça pública do notário. Jamais o povo deveria esquecer esse pioneiro, reconhecido pela sua luta e pela prestação de serviços à comunidade. Arconço lutou contra seu último inimigo fatal, descansou suavemente, levando para a eternidade o sonho de ver seu busto de bronze numa praça qualquer, apreciado pelo povo de Pequena Londres.

O destino de Tiburcio Lastragol não foi surpreendente. Ele deixou o jornal, estava cansado de “se arrastar com miserável bem estar naquele monte de esterco que era Pequena Londres”. Não aceitou uma proposta de sociedade com Sinfrônio, preferiu vender o “Saturno” para um sapateiro recém chegado do sul do país. O jornalista também desprezou Walkiria, sugerindo fidelidade ao marido. Não estava disposto suportar uma mulher moderna e complicada. Preferiu se aliar aos contrabandistas radicados na “Ponte da Amizade”. Era muito mais lucrativo contrabandear wiske do Paraguai para o Rio de Janeiro do que produzir jornalismo marrom em Pequena Londres. Ele reconheceu que o tempo de Pequena Londres havia terminado, uma geração havia se acabado, por isso não havia mais razão de permanecer ali às custas de mulheres mal-amadas.

O narrador deixou que cada personagem tomasse seu rumo dentro do previsível, sem surpreender o desfecho da trama. Ao tirar de cena as personagens mais importantes do romance, sua intenção era apontar para a multiplicação de atos de corrupção que vinham sendo apresentados por uma nova geração. Diante de um novo cenário que vinha se desenhando com o progresso material da cidade, foi necessário fixar uma tabuleta na entrada da cidade: ‘IGUAL A VOCÊ AQUI TEMOS DEZ MIL, POR FAVOR, VOLTE’.

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