Contos londrinenses:

Leitura e interpretação da obra Escândalos da Província de Edison Máschio, primeiro romance londrinense que retrata a sociedade na década de 50>>> leia aqui

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

A FICÇÃO DRAMATIZA A HISTÓRIA

A RECONSTRUÇÃO LITERÁRIA DE PEQUENA LONDRES
Edison Máschio e os Escândalos da Província




A FICÇÃO DRAMATIZA A HISTÓRIA




No romance Escândalos da Província há referências consistentes aos episódios históricos ocorridos em Londrina nos anos 50, o que aponta para uma releitura da história social local. Ao constatarmos um conjunto de acontecimentos vivenciados pelas personagens no romance, verificamos a existência dos mesmos que foram analisados pela historiografia da época. Um dos vários episódios foi à passeata das meretrizes de cabeças raspadas, registrado pela imprensa local e, segundo a versão do jornalista Marinósio Filho, a “passeata original das prostitutas” foi organizada pela dupla de jornalistas Ciro Ibirá de Barros e Dicesar Plaisant Filho, da Gazeta do Norte, mentores de uma campanha vingativa contra o delegado Silveira Santos, acusado de truculência e mal-tratos às “doidivanas” londrinenses. O desfile ocorreu precisamente às 9 horas do ano de 1948:


“Todas as mulheres com as cabeças raspadas, na frente os jornalistas Ciro e Plaisant, iniciaram a marcha do protesto. Curiosos também participaram. O espetáculo foi dantesto. Um misto de agressão e desabafo. As meretrizes desfilavam, passos lentos. Umas sérias, outras gargalhavam. Havia as que choravam. A polícia, permaneceu em seus postos. Observava apenas. O delegado não se fez presente. A avenida Paraná ficou apinhada de gente. A assistência delirava. Gritos, palmas, apupos e gargalhadas.
O moralista, “puritano”, repudiava. O debochado, zombava. Algumas senhoras assistiam, silenciosas e outras, se refugiavam nas casas comerciais. Lógico que houve senhoras que protestaram contra o espetáculo: “Prostituta não tem vergonha”. “Isso não é gente”. “Que imoralidade.”(7)


Segundo a interpretação da imprensa, esse episódio denunciou os exageros cometidos pela polícia, abuso de poder da cúpula da Segurança Pública local. O fato provocou um sentimento de indignação na população. A idéia era chocar, criar um fato, exigir o respeito aos direitos das prostitutas, diariamente humilhadas pelos policiais de plantão. A transformação desse acontecimento em matéria literária foi crucial para revelar outra realidade, baseada na decadência dos costumes da sociedade local e não somente vinculada à questão da denúncia. No romance Escândalos da Província, o episódio aparece narrado com outra profundidade:


“Num daqueles dias, à hora matutina, a cidade foi surpreendida com um espetáculo original. Escoltadas por soldados, cinco prostitutas desfilaram pelas ruas centrais, levando no ombro um cartaz humilhante: “Somos prostitutas, vergonha da cidade”.
Leon Arrochelas foi o autor intelectual da façanha. Há tempo exteriorizava uma espécie de ojeriza contra as prostitutas, procedimento peculiar de sua natureza de pederasta. Aproveitando o calor da campanha da moralização, vislumbrava uma oportunidade de ouro para perseguir as prostitutas. Ordenara ao delegado de polícia que o chamasse quando as prendesse. O delegado conseguiu prender cinco que cometiam desordens num bar. Comunicara-se com o Juiz, recebendo então a estranha ordem: a polícia deveria raspar a cabeça das meretrizes e em seguida obrigá-las a desfilar pela cidade.”(8)


A reconstituição histórica e a narrativa literária aí se fundem, se interpenetram e se completam. A descrição do discurso histórico da imprensa interpreta o episódio focando exclusivamente seu caráter sensacionalista e o impacto social e moral sofrido pelos expectadores do “espetáculo”. O modo como foi organizado e programado o desfile das prostitutas, pelos jornalistas da Gazeta do Norte, sugeriu uma denuncia contra o abuso de poder praticado pelos policiais da Corporação local que, além de explorarem as meretrizes, visavam a exposição delas para situações ridículas, como se tivessem autoridade sobre o corpo e sobre a atividade exercida por elas. Nesse discurso fica caracterizado o despreparo da polícia em enfrentar o problema da prostituição na cidade, colocando-o apenas como questão delituosa e não como fenômeno social.

Fica evidente que, no fundo, os jornalistas Ciro e Plaisant, tinham interesse em demonstrar que podiam manipular a opinião pública, defendendo as prostitutas em oposição à atitude da polícia. O fato virou notícia por muito tempo, forçando uma tomada de posição do alto escalão da Segurança Pública, que ainda lidava com o assunto com bastante cautela. Não convinha ao poder público polemizar uma delicada situação, portanto, estabelecia um distanciamento estratégico das acaloradas discussões em torno do ocorrido.

A ficção romanesca parece ir mais a fundo, descobrindo, hipoteticamente o que originou o episódio e, de certo modo acrescentando os elementos pelos quais se produziu o “evento”. O narrador conta a história por um ângulo diferente, buscando coerência nas ações das personagens, isto é, os motivos que levaram a realização de um desfile tão excêntrico na pacata Pequena Londres. Ele busca na essência dos conflitos e dos escândalos históricos vividos pelas personagens a armação da trama contra as meretrizes.

Na narrativa literária evidencia-se que o autor intelectual da “façanha” foi o juiz pederasta. Ele configurava uma das personagens mais moralistas da cidade. Sua natureza homossexual mostrava claramente certo desequilíbrio emocional para tratar de um problema complexo, um “barril de pólvora”, que gerou uma repercussão negativa em Pequena Londres. No romance a sociedade incorporou a defesa das meretrizes por praticarem um “trabalho honesto”, via com naturalidade os serviços prestados por elas à cidade.

Na ficção as prostitutas simplesmente desfilam, sem saber que estavam sendo julgadas por práticas ofensivas ao bom costume social. O próprio narrador diminuiu o impacto do acontecimento, amenizando o choque de uma cena teatral bastante original. Mas deixa claro ao leitor que o episódio das carecas não ocorreu espontaneamente, foi armado por quem demonstrava desejo de vingança contra as prostitutas. O ódio às meretrizes se justificava mais pelo fato delas representarem objeto de desejos dos jovens, do que pela sua condição social. Seu próprio amante Dr: Adelardo Nobre era constantemente “fisgado” por elas que prestavam serviços caprichados. Esse fato o deixava cego de raiva, aumentando ainda mais a idéia de levar às últimas conseqüências a tentativa de exterminar definitivamente todas as meretrizes da cidade. Não foi tarefa fácil. Com esse episódio as meretrizes ganharam notoriedade, porque todos os homens que por ali passavam, as reconheceram como puro fruto do prazer, e, o que deveria ser uma surpresa desagradável, passou a caracterizar um ato de piedade para quem garantia momentos de alegria e amor proibido.

Assim, no relato histórico o episódio ganhou conotação divergente da narrativa literária. As personagens reais são bem diferentes das fictícias, uma vez que, o foco de interpretação tomou um rumo distinto, fincado entre o discurso jornalístico e a crônica policial. O episódio é recontado por outras fontes, por testemunhas também envolvidas na armação. Sob um mesmo fato, lançaram-se várias interpretações. Marinósio Filho o narrou dramatizando o aspecto da denúncia, da provocação feita pelos jornalistas Ciro e Plaisant ao poder policial. Esta visão deixava evidente que, ambos jornalistas tinham interesse em confrontar com ironia as autoridades moralistas da cidade, desejando desafiar as autoridades locais que viam com descaso a humilhação das meretrizes. A idéia de defendê-las ligava-se com a tentativa de desestabilizar a influência política exercida pelo delegado Silveira Santos, que baixou uma portaria para aprisioná-las. Após o desfile das carecas, ele foi pressionado a deixar o cargo por não ter mais condições de controlar as intrigas sociais, das quais a Segurança Pública municipal tinha a incumbência de solucionar eticamente.

O episódio entrou para a história local pelo seu caráter excêntrico, numa época que não era comum produzir polêmicas em torno de um fato de grande dimensão, apesar de seu caráter banal em relação aos direitos humanos. A descrição de Marinósio Filho permite compreender o episódio pela sua espontaneidade, mas é possível também ver a manipulação do fato, induzindo a população a refletir sobre a necessidade de mudança nos altos escalões do comando da cidade.

A literatura reescreveu esse episódio de maneira ácida, indo buscar na investigação um argumento bastante coerente, próximo da realidade que escandalizava Pequena Londres. A narrativa literária deu ênfase ao aspecto do poder moral exercido pela justiça, que interferia na vida pública e privada do cidadão comum. A personagem Dr: Leon Arrochelas, como juiz, ocupava cargo superior ao de delegado, portanto seria improvável que a ordem ou mesmo a autoria intelectual do desfile das carecas partisse unilateralmente da figura do delegado. A literatura, nesse caso, invadiu a história, com único interesse em reconstituir a ambigüidade do episódio. Ela estabeleceu uma verdade subjacente, que não estava exposta à visão dos inúmeros expectadores, que presenciaram o “espetáculo das carecas”.

A narrativa literária se aprofundou naquilo que motivou a perseguição ridícula e desmoralizante intentada pelo Dr. Leon. Só, aparentemente, limitou a descrever o episódio, deixando implícito que, tratando-se de questão moral, nenhum poder constituído por grupos dominantes de Pequena Londres detinha condições de julgar e controlar os costumes da sociedade.

Nesse sentido a narrativa de Escândalos da Província pode ser encarada como reprodução e interpretação desse episódio, no momento preciso de sua reconstrução. O objetivo do discurso literário, nesse contexto, é a produção da realidade estética. “E realidade estética significa problematizar a realidade objetiva, seja ela qual for; a literatura visaria então não apenas a colocar a presença das coisas, mas a interrogar essa presença, a colocá-la em questão.”(9) Nesse episódio histórico, o narrador questiona com legitimidade a veracidade do fato, vai buscar no “silêncio do poder” os motivos que levaram à atitude de raspar as cabeças das prostitutas, descortinando as intenções veladas, “maquinadas” pelo juiz Dr: Leon Arrochelas. Daí que, a literatura consegue revelar seu objetivo de dar conta de uma realidade histórica que escapou do próprio discurso histórico jornalístico. Como dizia o escritor Malraux, “a matéria que o romancista é obrigado a buscar no universo exterior serve-lhe apenas como meio de criação que vai nutrir seu poder de transfiguração do real e favorecer a criação de seu universo particular”.(10)

Essa transfiguração do real resultou num questionamento inesperado de um episódio histórico, manipulado pela imprensa local, que nos dá a impressão que o fato narrado realmente ocorreu daquela maneira. Ao contrário, a manipulação literária, tornou-o mais realista e coerente com a realidade da época. A questão central era proporcionar um escândalo que chocasse a população, mas a reação dos expectadores foi tão ambígua, que a grande maioria da população masculina se sentiu escandalizada, não pelo episódio em si, mas por se identificar com as prostitutas, vendo-as como “batalhadoras” necessárias à sociedade. Na época, era consenso em Pequena Londres as meretrizes não representarem ameaça à ordem e ao convívio social.

Nessa mesma época em que ocorreu esse episódio cômico, houve outro de dimensão mais profunda: a trágica morte de um ilustre advogado de Pequena Londres. O envolvimento da Justiça local em escândalos históricos trepidava a pacata Londrina, inspirando cronistas e escritores que não estavam comprometidos com grupos dominantes da sociedade. No romance Escândalos da Província, o narrador nos apresenta brevemente um crime, cometido por um juiz de direito da cidade. Na época, a cidade foi abalada de tal forma que a própria literatura sentiu um ar tenso no seio social, evitando, assim, por inúmeras razões, apimentar a situação já caótica do caso. Daí que, o narrador intencionalmente procurou omitir referências diretas ao crime, procurando elucidá-lo através dos diálogos e das confissões das personagens. Mas não deixou de registrar o “incidente” fatal, como um dos mais bárbaros ocorridos no interior de uma cidade considerada “civilizada”. Muito superficialmente a personagem Sinfrônio comentava com o novo juiz da Comarca:


“Ainda falam no crime do Juiz. Saiba o senhor que o advogado foi entregue ao pasto dos vermes, estupidamente. Porque o crime teve como causa o ódio e a inveja. O seu colega era doente na acepção do termo e capaz de levar a cabo as piores proezas. Perseguia inimigos e enxotava advogados das salas de audiência.”(11)



No romance é fundamentada a tese de crime banal, motivado pelo ódio e a inveja. O narrador entende a atitude do juiz como insana, proveniente de doença mental. Argumenta que o referido juiz já não conseguia discernir os problemas da vida profissional dos de rixa pessoal, levando todas as suas diferenças forenses à apreciação pública. Todos os cidadãos de Pequena Londres conheciam bem a rixa entre ambos só que ninguém tomava partido nessa luta de “titãs”. Pois sabiam que cedo ou tarde poderia ocorrer aquele acerto de contas, previsto como uma trágica morte anunciada:


“Numa noite brumosa, após maquinar os passos, quando o advogado dirigia-se despreocupadamente para sua casa, o juiz aguardara-o de tocaia, desferindo-lhe dois tiros na cabeça.
Dois tiros à queima-roupa, frontais e certeiros! Ao ver o advogado estrebuchar, cheio de dores horríveis, vomitando sangue, marchando para a escuridão da morte, expandira espasmo emocional, de júbilo e contentamento. Tivera liquidado aquela inteligência luminosa, aquela veia cintilante do saber que o castigara com tantas lições.”(12)



A narrativa reconstituiu os últimos lances do crime, mas guardou em segredo a real identidade do assassino e da vítima. Mas, como se tratou de um crime que abalou a região norte do Paraná, já pressupunha que o leitor da época se recordaria desse acontecimento, ainda vivo na memória da sociedade. A inquietação do narrador deixa claro que, a criação das personagens fictícias correspondia com a realidade do crime. A verdade é que cidade parou. O assassinato do advogado chocou até mesmo aqueles corajosos caçadores de estórias que saíam à noite em busca de matéria-prima para compor suas narrativas – cronistas e romancistas boêmios.

Já o Historiador Tony Hara, identifica a vítima e o assassino ao investigar minuciosamente todos os detalhes do crime, após longas pesquisas historiográficas, construiu uma versão que correspondeu fortemente com a realidade dos fatos. Analisando o processo e a repercussão na imprensa local da época, elucidou pontos importantes, os quais a própria imprensa não teve acesso, ou, ignorou para manter sua postura de imparcialidade adotada desde o momento da tragédia. Na versão de Tony Hara se constatava que:


“Nas ruas poucas pessoas transitavam. Era hora de dormir. O advogado Alcides Tomazetti voltou para casa de táxi, angustiado, preferiu não entrar e resolveu passear nos arredores de sua residência. O juiz Ismael Dorneles subia pela Paraná, depois de uma sessão de cinema no Ouro Verde e de um cafezinho com amigos no restaurante Caloni. Ele também voltava para casa. Os dois homens se encontraram no cruzamento pouco iluminado entre a Avenida Paraná e as ruas Ceará e Tupi, onde morava Tomazetti. Eles estavam armados. Foram disparados dois tiros. Alcides Tomazetti, 46 anos, desabou na calçada ferido na testa. Oito horas depois, o advogado morreu na Santa Casa de Londrina.”(13)



Numa descrição cinematográfica, rica em detalhes, composta literariamente, Tony Hara esmiúça com um olhar misto de pesquisador e romancista o episódio, revelando uma evidência do crime: a rixa. Esta versão do crime coincide com a do escritor Edison Máschio. O advogado Alcides Tomazetti e o juiz Ismael Dorneles de Freitas haviam travado antes do crime uma verdadeira batalha de insultos e ameaças, se tornando inimigos implacáveis, motivados por questões banais. A relação entre ambos era de uma provocação irritante no ambiente de trabalho, um não suportava o outro; a simples presença de um no mesmo espaço do outro já criava um clima de tensão. Sendo figuras ilustres no meio jurídico, disputavam a atenção no círculo de advogados, travando uma competição acirrada acerca de quem dominava mais conhecimento forense.

A sociedade londrinense, em geral, se posicionou entre a consternação, o choque e o pânico. Quando um crime envolve indivíduos ilustres pertencentes à burguesia, era consenso, após o instante de abalo, abafar o fato a qualquer custo. Neste crime “as explicações preconcebidas não se encaixavam com a situação social dos protagonistas. Não era a “maldita cachaça”, muito menos falta de cultura ou de convívio com a elite civilizada, que provocou a morte de Alcides Tomazetti. Esse deslocamento da certeza e da condenação imediata deixaram jornalistas – principalmente os que usavam a palavra como chicote – completamente desnorteados.”(14)

A imprensa local adotou um posicionamento de neutralidade, isentou-se de qualquer editorial reflexivo acerca da violência urbana que começava a ser praticada pela burguesia. Simplesmente se calou, como se tratasse de uma censura voluntária, omitindo a informação ao público em pânico. Não havia para ela a existência de um vilão a ser condenado nem tampouco uma vítima fatal, pois não se sentia confortável na função de esclarecer e informar o ocorrido com celeridade. A cidade foi tomada por um clima de tensão jamais visto na história. Apesar do crime ter ocorrido na rua, no exato momento do disparo, uma única pessoa presenciou o fato como testemunha ocular:



“Depois da descarga emocional e do alívio de ver o oponente caído na calçada, Ismael Dorneles de Freitas refez-se e tratou de providenciar ajuda médica a Tomazetti, que ainda respirava. Dorneles pediu para que o guarda noturno Francisco Martins telefonasse para um médico, mas a sala onde se encontrava o telefone no Posto Regina estava trancada.”(15)



A única testemunha arrolada no processo foi um guarda-noturno. Certamente estava consciente do que representava aquele crime. A testemunha sequer teve tempo de gozar de notoriedade na imprensa, não teve aqueles minutos de fama. Sua condição social era tão incompatível com a dimensão do fato que o valorizaram muito pouco como peça-chave para elucidar o crime. De qualquer maneira, estava à disposição da justiça, a qual se preocupou muito mais em encontrar um culpado para responsabilizar a injustificável atitude da polícia, do que efetuar a prisão em flagrante do autor do crime. O narrador de Escândalos da Província, cuidadoso no julgamento dos fatos, neste contexto, suscitou:


“Vergaram os fatos de tal jeito, que arrumaram como artifício à legítima defesa. Buscaram uma testemunha ocular, que era cega de um olho e estrábica de outro. Tratava-se da única que existia e depunha a favor do assassino. A justiça tinha de ouvi-la e dar-lhe razão.”( 16)


Ironicamente a única testemunha do crime mal enxergava, mal sabia que presenciara um crime histórico. Não se sabe ao certo o fim que levou o guarda-noturno, certamente foi poupado pela sua condição social e física, não suportaria tanta pressão, mas não deixava de ser uma testemunha legítima. Como naquela época não se dava importância e nem se levava em consideração a palavra de indivíduos humildes, de trabalhadores braçais, a testemunha foi pouca explorada, até mesmo pelos meios de comunicação. Não havia portanto, “a quem responsabilizar ou culpar pelo ato criminoso, a não ser o próprio juiz Ismael Dorneles de Freitas. Mas, como condenar uma figura notável da cidade, que tinha justamente como função social julgar, aplicar a lei e manter a ordem.”.(17) Seria impensável que nos anos 50, um simples guarda-noturno, quase cego, pudesse testemunhar contra um juiz, assassino confesso, que detinha o controle absoluto da justiça local, culto e, sobretudo, crente na impunidade pelo fato de gozar de foro privilegiado.


O influente professor e advogado-cronista, Alberto João Zortéa, amigo de Alcides Tomazetti e admirador do magistrado Ismael Dorneles de Freitas, deu uma versão diferente ao crime, no que se refere à reconstituição dos momentos finais da fatalidade. Como companheiro de profissão da vítima, argumentou numa crônica intitulada “Versão para o difícil”, que dr: Alcides Tomazetti era “cavalheiro inteligente; possuidor de uma memória incrível, mas esquisito”. Considerava desnecessária a atitude de Alcides elaborar suas petições advocatícias numa linguagem rebuscada, quase incompreensível para impressionar o Judiciário da Comarca e da capital. Para o cronista a idéia de escrever difícil, hermeticamente, como estratégia de convencimento e de imposição no meio forense não deu um bom resultado:




“E depois de várias intervenções da turma do “deixa disso”, ao querer tirar um desforro pessoal com o magistrado, culminou, certa tarde, no final da Avenida Paraná, com o já esperado. O dr: Tomazetti, que vinha prometendo desmoralizar o juiz, seguiu ao seu encalço, para amedrontá-lo, manobrando um Parabelum-alemão.

O juiz ao pressentir a manobra da arma, virou-se num repente, afrontando-se com o Tomazetti e lhe deu um tiro de bereta, certeiramente, no meio da testa.

Já viu... Caído ao chão o advogado, prestou-lhe ainda socorros, mandando conduzí-lo à Santa Casa, que, não resistindo ao ferimento, veio a falecer.”(18)


É necessário corrigir duas questões centrais nesta crônica. A primeira, que o crime ocorreu no período da noite, precisamente no momento em que já não havia mais ninguém transitando nas ruas centrais. A segunda, é a de que foram dois tiros disparados e não um único tiro. São informações relevantes, investigadas por Tony Hara, como também, por Edison Máschio, que influenciam muito na reconstituição do crime. As coincidências das informações narradas pela literatura e pela investigação histórica foram fundamentais para se ter uma noção da verdade dos fatos. Numa tragédia dessa proporção é natural que as confusões de informações sirvam para ofuscar a verdade e mesmo omitir situações que revelam a natureza e os motivos daquele acontecimento.

Na literatura, a personagem Sinfrônio foi quem mais sentiu a morte do advogado, ele “relembrava a cultura incomum, o espírito vivaz e galhofeiro, adornado de coração adamantino, incapaz de fazer mal a uma formiga.”(19) A personagem Leon Arrochelas, também investigou o arquivo do Cartório Cível e constatou que Alcides Tomazetti “fora um cravo no sapato do juiz. Dera-lhe eruditas e jocosas lições de direito.”(20) Daí o verdadeiro motivo das desavenças entre o assassino e a vítima, o qual resultou nesta premeditada vingança cometida pelo juiz. As personagens Leon e Sinfrônio estão convencidas de que a “batalha judiciária empolgava o juiz com lances mentais criminosos. Suas sentenças eram continuamente reformadas pelo Tribunal de Justiça; as vitórias do advogado lhe representavam humilhação, desprestígio.”(20)

Nesse clima de consternação, revolta e lamentação, o narrador informa aos leitores que, o crime do juiz permitiu realizar uma reflexão profunda sobre o caráter moral da população, a falta de coerência nas ações dos indivíduos, que aos poucos iam assistindo a decadência dos valores da burguesia local. Associa-se também a nítida contradição social, na qual os padrões de moralidade pouco correspondiam com a imagem de povo civilizado, rico e próspero.

O narrador revela uma disposição incansável para retratar a sociedade nos anos 50, percebendo que, nesta época, produziram-se as mudanças mais significativas do comportamento social. A personagem Tiburcio Lastragol, conceituado jornalista e dono do jornal “O Saturno”, mas de identidade social ligada à dos vigaristas da cidade observava: “Ser chamado de ladrão em Pequena Londres é termo de rotina. A ofensa cala fundo quando chama o indivíduo de analfabeto. Ninguém quer ser taxado de ignorante. Por outro lado, aqui, louco não é aquele que rasga dinheiro. Louco é identificado como louco quando diz a verdade.”(21) Esse era o pensamento que dominava os indivíduos em Pequena Londres, quem carregava a fama de ignorante tinha pouca expectativa de vida, pois era visto como “jacu”, expressão cunhada aos indivíduos folclóricos, ingênuos e explorados por todos na cidade.

Assim, Tiburcio deixa subentendido que o termo “ignorante” ofendia muito mais a honra do indivíduo do que qualquer tipo de violência física ou moral. Ter a fama de ignorante em Pequena Londres era como não ter direito de participar das decisões políticas e da partilha da riqueza do café. Essa idéia de certa forma relacionava-se ao crime do juiz, pois havia um forte indício de que tanto o assassino quanto a vítima não suportaram o peso desse termo, que pendia para uma desmoralização definitiva do bom profissional, seja ele qual for, devendo sempre evidenciar seus conhecimentos, suas habilidades para ganhar reconhecimento da sociedade. Qualquer deslize em relação à prática da humildade era fatal. O indivíduo humilde não era bem-vindo, ele necessitava recorrer à soberba e à arrogância se quisesse ter alguma chance de sobreviver em Pequena Londres. Caso contrário, teria que enfrentar este estado desalentador:



“Pequena Londres era fértil em escândalos, laboriosa escola de vícios, presa num emaranhado de doenças morais. O cidadão ficava voltado para o lado ruim da vida, distante dos primores da virtude. Poderia haver fato mais repelente do que um Juiz de Direito amasiar-se com um advogado e vender sentenças nos gabinetes da justiça?”(22)



Podemos notar nesta outra personagem um caráter bastante subjetivo à cidade, que generaliza os escândalos decorrentes da falta de virtude dos agentes históricos que, a todo instante, revelavam atitudes ambíguas e pouco nobres. As instituições também colaboravam para que o ambiente social ganhasse em tensão, uma vez que não se tinha preocupação alguma em manter valores tradicionais de incorruptibilidade no seio social. Daí que a reflexão do narrador confirma apenas os fatos informados pelas personagens. A cidade vista por este prisma negativo não significava, de modo algum, uma crítica demolidora ou mesmo raivosa. Significava na verdade uma demonstração de quem queria lutar, travar uma batalha cotidiana para libertar Pequena Londres desse baixo astral.

Entretanto, o romancista tinha apenas, no seu arsenal bélico para enfrentar a guerra, uma caneta e papel. Para tentar mudar aquela situação este material era muito pouco dada a proporção dos inúmeros escândalos insolúveis na cidade. Daí que, o narrador resolveu produzir com liberdade um conhecimento reflexivo sobre a situação histórica mais relevante, focada nos escândalos institucionais que comprometiam a imagem de cidade laboriosa, rica e dinâmica, o Eldorado.

Em Pequena Londres a década de 50 foi marcada literalmente por mudanças em todos os sentidos. Os avanços econômicos decorrentes da euforia do café produziram riquezas incalculáveis, a ponto de enlouquecer o indivíduo mais simples da cidade. Foi exatamente esse cenário raro de riqueza em contraposição a uma estrutura social frágil em princípios morais e culturais que mais intrigou o escritor Edison Máschio, que entendia ser crucial registrar literariamente o comportamento social da época. A intenção de construir um espelho real da sociedade, pesou na consciência a necessidade de ser fiel aos acontecimentos históricos. Daí que sua criação literária tornou-se um documento da época, um documento legítimo dos fatos mais marcantes da cidade. Os episódios, o desfile das prostitutas carecas e o crime do juiz constituíram só um exemplo das relações entre os indivíduos na sociedade. Essas relações foram matéria-prima da literatura, o produto final de uma narração que desvendou o significado histórico de uma sociedade que, a cada década, ganhava um traço de identidade diferente. Ela precisava de uma identidade única.






REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS




1 - VARGAS, Llosa Mário. Kathie e o hipopótamo. Rio de Janeiro: Francisco Alves,
1988. p. 11.

2 - op.cit. p. 11.

3 - op.cit. p. 13.

4 - CÃNDIDO, Antonio. A personagem do romance. In: A personagem da ficção. São
Paulo: Perspectiva, 1968. p. 58.

5 - MÁSCHIO, Edison. Escândalos da Província. Londrina: Promoções Publicitárias,
1965. p. 24.

6 - LIMA, Luiz Costa. Estruturalismo e Teoria Literária. Petrópolis: Vozes, 1973.

7 - MARINÓSIO FILHO. Dos porões da delegacia de polícia de Londrina. Londrina:
Gráfica Técnica/Canadá Produções didáticas S/A, 1979. p. 11

8 - MÁSCHIO, Edison. Op. cit. P. 59.

9 - FREITAS, Maria Teresa de. Literatura e história: o romance revolucionário de André
Malraux. São Paulo: Atual, 1986. p. 36

10 - op. cit. p. 42.

11 - MÁSCHIO, Edison, op.cit. p. 36.

12 - op. cit. p. 38.

13 - HARA, Toni. Caçadores de Notícias; História e crônicas policiais de Londrina 1948-
1970. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 2000. p. 59.

14 - op. cit. p. 61.

15 - op. cit. p. 76.

16 - MÁSCHIO, Edison. Op.cit p. 37.

17 - HARA, Toni. op. cit. p. 61.

18 - ZORTÉA, Alberto João. Londrina através dos tempos e crônicas da vida. São Paulo:
Ed. Juriscred, 1975. p. 242.

19 - MÁSCHIO, Edison. Op. cit. P. 37.

20 - Op. cit. p. 37.

21 – Op. cit. p. 73.

22 - Op. cit. p. 65.

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